23.1.10

Tom Zé Nu & Cru - Íntegra da Entrevista


Em Setembro de 2009 publiquei reportagem com Tom Zé, na revista Brasileiros. O texto tem apenas excertos da extensa entrevista, que agora posto na íntegra

1. No programa de calouros Escada para o Sucesso, em sua estréia na tv. você defendeu o tema Rampa para o fracasso e foi chamado de “Juca Chaves dos Pobres” pelo jornal Diário de Notícias. Foi a irreverência sua melhor arma para romper com o que você chamou de corpo cancional e sua formalidade?

Deixe-me ver se lhe dou uma idéia do que aconteceu no começo. Eu procurava alguma coisa prá me segurar no mundo, esse é o motor primeiro, é o ponto de partida e música não era assim uma coisa que estava muito evidente, não tinha nada daquilo de dizer: “ Aos oito anos de idade mostrou, logo, sua vocação!” Era o caso de dizer: “Aos oito anos de idade mostrou que não tinha a menor vocação para a música”. E tem um episódio curioso nessa época. Um dia o professor da escola, que tinha um vocabulário gozado, Arthur de Oliveira, ele falou: “Isso aqui é um negócio democrático, se você quiser tocar a caixa ou o tambor, aqui na escola você pode. Qualquer um pode, qualquer um tem o direito de passar pelo exame”Aí, falei: “Ah, vou tocar este tambor!” Fiquei num contentamento e, na minha imaginação, eu saberia tocar aquilo perfeitamente bem. Peguei o tambor com toda animação, dei as duas primeiras batidas e ele falou: “Você não tem jeito prá isso, me dá o tambor!” Se eu tivesse a capacidade de argumentação que hoje, talvez, tenha eu teria dito: “Mas espere aí, o senhor na verdade não me deixou tocar, eu nem firmei o ritmo, nem tive o contato com o objeto, que é estranho prá mim”. Eu não sabia que ali atrás estava um preconceito impressionante e uma coisa curiosíssima, que era dizer que filho de rico não se dedicava à música, que música era uma profissão de pobre. Mesmo assim, tinha uma pessoa que, desde cedo, estava me preparando prá eu ser artista, sem eu percerber: Renato Portela Martins. Ele tinha uma família católica, como a minha, mas meu avô tinha mandado os filhos prá universidade e isso foi uma loucura. Universidade era uma coisa improvável e, na família de meu avô, três ou quatro se tornaram comunistas. Meu tio Fernando, que foi presidente da UNE, era um comunista famoso e ser comunista era uma coisa muito perigosa. Esta família de Renato era uma família católica e tinha um ódio da gente, terrível, mas Renato, um dia eu jogando futebol, com uns dez anos de idade, contra o time de Alagoinhas, que era muito melhor do que o nosso, um futebol mais desenvolvido, dizia prá mim: “Tom Zé”, jogue com a cabeça!” Esse foi o primeiro enigma que eu tive de decifrar, porquê, em se tratando de um jogo de criança é muito mais pelo chão que pelo ar, e até eu compreender que jogar com a cabeça não era suspender a bola prá chutar e dar de cabeça, entender que era uma metáfora, foi um percurso intelectual e Renato era uma criatura assim, parece que tinha a percepção de que, quando jogava sementes no terreno que era eu, que essas sementes um pouco medravam, um pouco cresciam e ele era sempre de dizer coisas pensadas, por exemplo, um caso que ele contava, uma coisa tão matemática e tão bonita que eu gravei desde criança. Dizia que pegaram um velho e perguntaram se ele tinha sido feliz e ele disse: “Não, prá ser feliz precisa ter três coisas. Eu tive estas três coisas, por muito tempo, mas não tive elas três juntas. Prá você ser feliz, você precisa ter: dinheiro, tempo e disposição; então, quando eu era pequeno, eu tinha tempo e disposição, mas não tinha dinheiro; quando eu era adulto, eu tinha disposição e dinheiro, mas não tinha tempo; agora, que estou velho, tenho tempo e dinheiro, mas não tenho disposição! Naquele tempo, ser feliz prá mim, significava uma certa possibilidade de ter namoradas, de ter uma frequencia amorosa mais volumosa e fiquei pensando que prá eu achar estes três dados, com a impossibilidade do ser humano em ter todos os três juntos, nestas três fases da vida, seria tão difícil, quanto decifrar a esfinge, mas Renato deu os detalhes finais prá eu entrar em música, e eu ia pro jardim, às cinco horas da tarde, os rapazes e as meninas trocavam de roupa e iam pro jardim e quando chegava perto, já avistava alguma menina, e não tinha a menor sorte com moça, não tinha namorada e o escambau, aquilo ia me dando um sofrimento filho da puta, mas era algo que só o fato de você ficar no jardim com as meninas por perto já era um alívio. Sei que quando eu ia chegando ao jardim, Renato vinha passando com um violão na mão e disse: “Tom Zé, eu agora não toco mais flauta”, eu realmente sempre o via com uma flauta transversal preta, a grande maioria era de metal mas a dele era de madeira e ele disse: “Não toco mais flauta, agora toco violâo, que é muito mais bonito!” Naquela hora em que Renato começou a tocar ali, eu passei por um alumbramento, por uma daquelas coisas que fazem o mundo girar e você entra numa espécie de estado mental alterado, em que você não compreende nada, aquela coisa que borbulha, que ferve dentro de você, e ele falando na minha frente e eu já tinha esquecido as meninas, já tinha esquecido tudo e não me lembro do que se seguiu, sei que no dia seguinte eu estava mandando comprar um violão, o próprio ajudante dele era dono da marinete de Irará, o único meio de transporte que Irará tinha prá fora. No dia seguinte eu estava comprando o violão, um método, e estava tentando começar a aprender.

2. Você passou um longo hiato sem compor, de 1961 à 1968, no período em que estudou na Universidade Federal da Bahia, com Koellreutter e Widmer. Quandou voltou a compor, mergulhou na guinada radical que foi o Tropicalismo, uma oposição extrema à visão reducionista do CPC. Acha que sua carreira se desdobraria de que maneira, se não tivesse experimentado estes anos na UFB? Acha que uma maior atividade no CPC revelaria um Tom Zé afeito a canções sisudas, de protesto?

Você tem razão, o fato de não ter me apaixonado pelo comunismo é uma coisa muito importante. Na minha família já tinha até um exemplo igual, tio Fernando era um comunista sempre rebelde à autonomia, tanto que ele era a figura mais importante do comunismo na Bahia, além de ter sido secretário-geral do Partido Comunista por alguns mandatos, era rebelde por natureza, e o partido tinha que engolir ele porque ele era tão eficiente prá tratar com o povo, que acabava recebendo votos de pessoas que não eram comunistas, e eu tinha uma admiração, impressionante, por ele. Naquele ano em que ele foi candidato, em 1961, ele e a mulher me tiraram de Irará, e eu acompanhei a campanha de tio Fernando. Quando a gente era mais novo, não tinha como não ser esquerdista, mas eu nunca fui do partido e não acho que o partido seja indigno. Não fui ao partido, pois não tive vontade de ir, mas quando fui diretor de música do CPC, fui graças à Nemésio Sales, que tinha sido secretário geral do partido, e que, quando eu tive um desentendimento na casa de meu tio, que ia voltar para Irará, me fez ficar em Salvador. Devo o fato de estar aqui, hoje, a Nemésio Sales, que me deu condições de ficar. Era o Partido Comunista, o velho partidão quem me pagava. Tenho este débito com ele! O velho partidão, me pagava trinta cruzeiros por mês. Eu era diretor de música do CPC e com estes trinta cruzeiros por mês eu pagava a divisão do apartamento do próprio Nemésio, dividido por eu, Alberto Bandeira, que era o então Secretário Geral do Partido Comunista, e o cineasta Geraldo Fidélis Sarno. Éramos os habitantes deste apartamento que foi o primeiro lugar invadido na hora que estourou o golpe de 1964. Lembro da capa de uma daquelas revistas Realidade, um homem com um peixe sendo fisgado, uma reportagem sobre a pesca artesanal. Ora, naquela época, o próprio censo dizia que a população iria dobrar e que a capacidade produtiva de alimentos precisva dobrar, prá não matar metade destas pessoas de fome. A capacidade da pesca artesanal, nunca iria chegar perto do que seria necessário, seria preciso desenvolver a pescal industrial e como é que eu vou defender, como é que nós vamos defender este tipo de Brasil bucólico que a esquerda queria, este tipo de Brasil que não abre as fronteiras prá modernidade, prá poder matar gente de fome? Se não produzir comida, vai comer o quê? Tinha argumentos como esse que também explicam muito porque o Brasil bucólico, que a esquerda queria, não podia se conformar com o Brasil que, na veradade, Caetano e Gil introduziram na cabeça das pessoas, aquilo que mesmo sob a égide de uma ditadura, ia levar o país a um salto imediato prá segunda revolução industrial. Hoje somos um dos países que mais usa internet, coisas que são absolutamente necessárias prá civilização. É capitalista, é o escambau e a coisa toda, mas nós também somos um povo civilizado. Eu tenho uma canção agora, que não foi nem cantada ainda, que eu digo que Caetano e Gil deram a vela prá nosso barco poder fazer a viagem, poder fazer nossos primeiros computadores. Nós fazemos essa porra, hoje! Nós, toda vida, fomos povo inventor, toda vida fomos povo que estava na frente das coisas: na hora que o avião ia subir, tivemos uma pessoa lá; a guitarra que outro dia tava no jornal: morreu o pai da guitarra! Pai da guitarra, uma porra! Pai da guitarra é Osmar, que a fez muito antes, e é bom dizer que Santos Dumont só tem o nome dele citado, porquê a França tem grana e o sobrenome dele era Dumont, e porque ele tava lá em Paris, se não os irmãos Wright seriam os únicos donos da aviação e era isso: Caetano e Gil, conscientemente, estavam lidando com estes status. Este é o tropicalismo deles. O Brasil já nasceu tropicalista, não tinha história e, se não tivesse sido gente como eles, prá representar o que fomos em nossa história, isso aqui seria o quê? Eles foram importantes por trabalhar com música popular. Uma coisa que tem uma inserção impossível de se imaginar e, então, ao mesmo tempo tem uma atitude repressiva como ditadura e o que é que ela quer? Que nossos cérebros se diminuam. Os professores começaram a ser degradados. Tem um pequeno dado: eu era namorado de uma professora. O salário dela foi instituído por João Goulart. 3000 cruzeiros e, olhe, o que significava isso: que as pessoas de capacidade estavam convidadas a serem professoras, porquê salário nenhum pagava aquilo, principalmente para mulheres, que eram a maioria. Significava que estavam privilegiando o pensamento, o desenvolvimento das crianças e o que foi que a ditadura fez? O contrário! Degradou os professores e veja como eles estão, até hoje, aí, servindo ao capitalismo nesta degradação do ensino. Isso é uma das coisas mais, terríveis! Por que falta educação? Porquê o governo não quer! O próprio governo de esquerda que está instaurado no Brasil, o governo de Lula, precisa que o nordeste seja miserável do jeito que é, prá poder lhe dar bolsa família, pois se o nordeste deixar de ser miserável, ele não vai ter aqueles votos todos. É uma maravilha para o governo Lula que o nordeste seja esta miséria que é. Eles estão dispostos a todas as providências prá que o nordeste não possa melhorar e se eternizarem no poder. É isso que está em jogo na hora que alguém mexe com a cultura da nação e foi isso que Caetano e Gil fizeram com consciência, sabendo que estavam fazendo. Claro, todo mundo vai ter o que falar mal do procedimento de um e de outro, mas tudo bem, pois, realmente, meu cumpadre, ali, na hora em que o cara pensou: vou fazer isso, não tinha uma santa alma que dissesse que estava do lado dele. O que pode representar bem isso? A famosa vaia do Tuca. A gente não pode ser cruel e dizer: “Aqueles filhos das putas que vaiaram Caetano!”, não é isso, não é esta a questão. Eu acho até que eles tinham a intuição de que aquilo era tão importante, que precisaria vaiar prá poder a notícia repercutir. Augusto de Campos, desde a hora em que Caetano, em 1965, defende na Revista Civilização Brasileira a retomada da linha evolutiva da música popular brasileira, à partir de João Gilberto, Augusto e os concretos disseram: “É esse o homem da gente! Este rapaz tá dizendo alguma coisa” . Você vê como estes concretos eram espertos e ativos os filhos das putas!

3. Já valorizavam e defendiam até mesmo Roberto Carlos, que era o grande vilão da época, não é?

O João Gilberto fala que, em 1969 ou 1970, quando tinha os famosos shows do teatro Paramount (A Bossa no Paramount), que eram celebrados como “a verdadeira música popular brasileira”, ele estava na porta, um dia na saída, e foi ver, como quem não quer nada. As pessoas nem se lembravam dele, fazia quase dez anos que ele não aparecia na televisão, ele entrou por um canto e alguém o perguntou se ele havia gostado, e ele disse: “Olha eu prefiro iê-iê-iê do que jazz retardado”, e é verdade. Quando Roberto fez seus primeiros discos de ie-ie-iê, aquele álbum da estrada de Santos (Roberto Carlos em ritmo de aventura) eram coisas que você, quando ouvia, se arrepiava. Quero que tudo mais vá pro inferno é tão bom, que Roberto Carlos agora proibiu. Não deixa tocar, não canta e não deixa ninguém cantar.

4. Em um texto seu intitulado Aniversário de São Paulo você conta um delicioso episódio em que narra a saia-justa de caminhar nas ruas da cidade com Gal Costa e ser fulminado por olhares reprovadores à calça comprida de Gal, traje adequado para mulheres de vida fácil. São Paulo era um tanto careta e preconceituosa, nesses idos de 1965. Vivendo aqui, até hoje, acha que essas coisas mudaram muito?

Gal e eu, a gente tinha um namoro meio atrapalhado. O dia que ela me chamava prá sair era uma festa, porque eu não tinha direito de chamá-la prá sair e ela disse: “Tônio vamos fazer umas compras na cidade?” E ela veio com uma calça de casemira, daquelas calças de filme de hollywood, dos anos 1940, e eu estou com Gal na rua e todo mundo bolindo com Gal, aí eu falei: "Pô, sou mesmo um homem de merda, não é? Já sou acanhado prá diabo, aí tô com a moça aqui e todo mundo bole com a moça?" Gal não era conhecida, não era nem Gal Costa, ainda, era Gracinha. Depois de muito sofrimento, uma senhora teve a caridade de chamar a gente no fundo de uma loja e falar: “Minha filha, moça direita não sai de calça comprida em São Paulo. Quem sai de calça comprida em São Paulo é prostituta!” Aí a gente compreendeu tudo, voltamos prá casa com o motorista de táxi dizendo cada nome. Aí eu disse: “Já entendi, já entendi: você deve achar que tá carregando uma puta e seu irmão, não é?” E Gal tão linda, que quase perguntei a ele: “E você ainda deve achar que eu sou rico, prá andar com uma dessas, não é?” Apesar de coisas como esta, a gente não enxergava o preconceito, porquê a gente estava inserido no meio da classe média, a gente não veio prá cá com uma mão na frente e outra atrás. Ganhávamos duzentos cruzeiros, por mês, prá fazer o Arena canta Bahia. Quando eu vim, que eles chamaram o grupo baiano todo prá fazer o espetáculo, eu já vim com a carteira do ministério do trabalho assinada. Me entregaram aquilo e eu pensei: “O que é isso: uma carteira de trabalho assinada pelo Teatro de Arena, como ator?” Ganhava duzentos cruzeiros por mês e comia no Redondo, que era o restaurante dos artistas, mas daí que você lidava fácil com as diferenças, pois na Bahia, até prá você tratar bem uma pessoa, você tem que tocar a pessoa, agora chegar um bicho como eu, com essa voz, com essa cara, chegar e pegar nas pessoas: “Ô neguinho...” O cabra dizia: “Sai daqui, tire esse carrapato de perto de mim” A gente tomava cada pontapé, querendo ser gentil.

5. A prisão e exílio de Caetano e Gil, e o consequente desmanche do grupo tropicalista, foi um período inicial de transição, em que cada um iria seguir seu rumo. Gil. Caetano, Gal e Bethânia tiveram carreiras de grande apelo popular, enquanto gente como você, Torquato Neto e Jards Macalé iriam experimentar um ostracismo vergonhoso. Esta ruptura, de alguma forma, também estabeleceu um rompimento da amizade que havia entre vocês? Ainda se relaciona com eles? Acha que, no campo artístico, ainda hoje, haveria convergência entre vocês?

Tem um incidente que explica bem isso: o dia em que Caetano falou bem de meu disco e que eu tive aquele desentendimento - que não quero nem tratar desse assunto, porquê é um assunto grosseiro, de uma hora que precisou disso -, naquele instante, eu falei que descobri, por infelicidade, por mortal infelicidade, que eu não pertencia mais ao grupo baiano. Quando teve essa coisa de cada um ir prá seu lado, prá mim foi doloroso, também, porque era perder amizades muito boas e eram amigos muito competentes, eram, vamos logo falar, gênios que, por acaso, eram amigos meus e perder estas amizades foi uma tristeza muito grande. Eles se separaram por decisão, decidiram que cada um devia ir prá seu lado, mesmo porquê, eles podiam seguir carreira, e eu tava decido a voltar prá Irará, prá onde eu iria de fato, se não fosse ter conhecido David Byrne, nesta casualidade do destino, anos mais tarde. Eu ia voltar prá Irará, prá tentar a vida por lá. Neste tempo já não existia mais a loja de meu pai, mas eu ia tentar um trabalho com meu sobrinho, que tem um posto de gasolina, a última coisa de negócios que a família tem, e eu ia pedir a ele prá ser o gerente dele, ser frentista. O que eu não queria era ficar aqui, sendo empregado do governo Montoro. Era muito nobre ir lá ajudar o governo a dialogar com seus artistas, mas eu não queria.

6. Quando o tropicalismo chega ao fim, sua música vai, cada vez mais, subvertendo estruturas da canção popular brasileira, seja em alegorias da bossa, flertes com a música de fossa, ou aquilo que Torquato Neto descrevia como “sambão quadrado”. Você acha que a ação coletiva limitou ou expandiu sua capacidade criativa?

Olha, eu vou dizer uma coisa: eu acho que, desde o começo, não tinhamos nenhuma afinidade. Eu estava na Bahia e um rapaz chamado Orlando Sena, jornalista, escalou que eu devia conhecer Gil e Caetano, e disse a mesma coisa a Gil e Caetano, que devíamos nos conhecer e Caetano trazia, naturalmente, Bethânia, irmã dele, que era uma cantora bem nova, mas cantando uma maravilha, e uma menina, colega nossa de dança, que apresentou Gal Costa a Caetano, que, naturalmente, foi uma coisa bem vinda a nosso convívio, uma maravilha, então, eles decidiram que eu iria ficar perto deles, eu não tomei nenhuma decisão. Quando nós nos juntamos e conhecemos as músicas uns dos outros, eles decidiram que eu ia ficar junto deles e fizemos juntos o primeiro show, o segundo, viemos juntos prá cá fazer o Tropicalismo e, na volta da europa, após o exílio, eles decidiram que cada um deveria ir prá seu lado. Na hora que eu entrei, não sabia que seria uma coisa tão grande, que estava me aproximando de gênios, que na verdade os são e, na hora da saída, eu já sabia disso, fiquei muito triste até porque era uma perda muito grande de amizade. Eu fazia um tipo de música em Irará, que é o seguinte, Eu ia falar do seu trabalho, da roupa que você está vestindo, da maneira que você se pinta, dos objetos que você usa, de forma que você se sinta, imediatamente, identificado, como um personagem dentro da música e incapaz de ver que eu não era cantor. Com se eu enganasse você. Minhas músicas eram prá enganar o ouvinte e impedir que ele descobrisse que eu não era cantor. Enfim, eu comecei a fazer música que, imediatamente, você começava a pensar e, quando eu falava: “Guilherme se requebra”, você já tava: “Isso, eu sei o que é isso!”. Você já era personagem da canção.

7. Você mesmo já citou que o hiato entre 1968 à 1973 foi seu período de vida e morte na tropicália. Seis anos mais tarde, em 1979, Celso Favaretto publicou o livro Tropicália Alegoria Alegria e sequer menciona seus álbuns na discografia do movimento, nem mesmo Liquidação Total, tido como um dos mais importantes da tropicália. Nestes idos de 1973 já desconfiava que estaria fadado a tal esquecimento?

No quinto aniversário do Tropicalismo, eu era tropicalista; era parte do grupo, da imprensa, da festa e de tudo. No décimo, como eu estava fora de circulação, comecei a ficar assim, lembrado, apenas. No décimo quinto, eu estava quase completamente fora e no vigésimo eu já tinha desaparecido, completamente. A RCA tem uma compilação de compactos do início de carreira do grupo todo (Eu vim da Bahia), e, já ali, você vê que eu faço algo completamente diferente, eles são bossanovistas. Então já estávamos separados, há muito tempo, mas ao contrário, eu fiz um pouco de esforço, a partir do momento que comecei a cantar com eles, nos shows na Bahia, no Teatro Vila Velha, em meu primeiro, segundo e terceiro discos, fiz um esforço muito grande, prá conseguir botar o que eu produzia, que não se chamava de música, no apelo da música popular. Música popular era “O samba da minha terra deixa a gente mole, quando se dança todo mundo bole...” e depois “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é” O A e B. Uma coisa e outra, porquê as coisas diferentes se unem, então o povo sempre teve a sabedoria de fazer o A e o B completamente diferentes uns dos outros, porque diferentes se unem, isso era o traço da escola de Viena, que me ensinariam tempos depois na UFB. Lembro que estava com Torquato Neto, no dia em que Caetano me trouxe aqui, no mês de setembro de 1967, porque em 1965 eu ainda voltei à Bahia, pois o pessoal da bolsa de estudos de música da universidade, me falou: “Ei, não vai voltar?” E aí fiz o Arena Canta Bahia e, à partir daquele resto de 1965, até 1966, 1967. eu já era quase dono da escola: dava aula de harmonia, e aí teve um daqueles tremores de terra, que em universidade tem muito, uma coisa contra meu diretor, que era Ernst Widmer, a escola toda sacolejou contra ele, e eu falei: “Professor, acho que o senhor vai precisar destes empregos meus”. Eu era jornalista da escola, pois tinha sido jornalista, em 1959, no Jornal da Bahia e a escola não percebia que ela seria muito matéria prá jornais, se fosse feito já da maneira que os jornais trabalhavam, se fosse escrito como os jornais trabalhavam e um alemão daqueles, que gostava de tirar fotografia, ia lá, tirava as fotos e eu montava a matéria, daí que a divulgação da escola quadruplicou e eu passei a ser o sucesso da escola como jornalista, passei a ganhar duzentos cruzeiros por mês. Era uma fortuna. Eu coordenava também os concertos da Orquestra de Cordas e do Conjunto de Metais da escola secundária, e também cobrava mais duzentos cruzeiros. Ganhava quatrocentos cruzeiros na escola. Puta que pariu! Acho que nem o governador da Bahia ganhava quatrocentos cruzeiros naquele tempo. Aí, quando teve essa resolução de abandonar, eu fui no jornal da Bahia, por acaso, entregar minha última matéria, e quando subi me disseram: “Caetano está aí, no terceiro andar” Isso era setembro de 1967, e eu falei “O Caetano, que saudades!” Aí, nós éramos, realmente, companheiros e amigos. “Que saudades!” e ele: “Poxa, cadê você?” E eu, naquele quebra pau na Bahia, e ele me disse aquela frase: “Eu já te disse: aqui na Bahia você só vai se aborrecer. Em São Paulo, você pode se aborrecer, também, mas pode ser que aconteça alguma coisa” Eu, como tinha dinheiro, peguei o avião e vim. Neste mesmo dia de minha chegada, ele me apresentou o disco dos Beatles, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, traduzindo música por música, pois ele sabia que eu não entendia porra nenhuma, qual era o significado daquilo tudo. Na noite do mesmo dia, ele me levou prá ver o Rei da Vela. Tratamento de choque. Eu fiquei convencido de que deveria vir mesmo e voltei à Bahia prá acabar o ano e prá cumprir as aulas que os alunos tinham pago e eu não tinha dado. As pessoas me diziam: “Como é que você pode estar envolvido com eles? Eles são artistas, você é um troglodita!” Aquele tempo foi dos melhores em minha vida.

8. No programa Roda Viva de 1993, você relembra que chegou a vender um imóvel na praia para investir nos intrumentos que inventava. Se definiu na mesma entrevista como incapaz de estrategiar procedimentos, logo depois, assume que desceu voluntariamante a rampa para o fracasso. Hoje, como vê estas escolhas? A realização artística amenizou as privações existenciais deste período difícil?

Estes instrumentos comecei a fazê-los em 1978, quando produzi Correio da Estação do Brás e eu já vivia tentando fazer algumas coisas. Quando você não é tocado no Brasil, tem uma coisa de dizer que você é vítima da cultura de massas, como eu não tenho vocação prá vítima, como eu não era tocado, eu fui trabalhar em casa. Eu não era chamado prá trabalhar na rua, não era chamado prá entrevista, não era chamado prá porra nenhuma, eu ia prá casa trabalhar. Como eu nunca botei a queixa como meu lema, o que me fez trabalhar durante meu tempo de ostracismo, foi que a queixa não era meu lema. Eu tive sempre muito doente, meu estômago era um orgão de choque naquele tempo, e só fiquei bom quando comecei a fazer Tai-Chi-Chuan. Uma coisa milagrosa. Ia lá tomar massagem e tal, uma hora de meia dúzia de movimentos, fantásticos prá sua cabeça e seu corpo, mas confesso que tinha vergonha de ir prá aula de Tai-Chi-Chuan. Sempre tendo vergonha.

9. Foi neste mesmo momento que você aderiu à macrobiótica, também?

Pois bem, o oriente me salvou aqui. Em 1985 eu estava morto. Enganava Neusa. Levantava prá enganar ela, prá dizer que tava vivo. Eu tava morto, não tinha energia nenhuma, não tinha nada, aí Neusa um dia falou assim: “Por quê não vamos na macrobiótica?” Prá quem tá morto, aqui ou na macrobiótica, tanto faz e eu falei: “Vamos, sim”. Chegando lá, o doutor me receitou uma semana de arroz e como eu não podia comer nada antes, pois ficava mal do estômago, o arroz, feito bem feito como a Neusa sabia e sabe fazer, com aquele gergelim e aquela salsinha, dentro de uma porção de arroz, tinha uma colherinha de salsinha e isso era minha vitamina C. Depois de uns quatro dias, meu intestino voltou a funcionar como não funcionava há muitos anos. Eu não sabia que meu problema era aquele. Eu já tava todo desgraçado, a mão não podia nem pegar em livro porque já estava toda despelando, excesso de ácido úrico. Tudo problema emocional e, comendo errado, vai piorando, daí que quando comecei a macrobiótica e os dez dias de arroz eu já era outra pessoa. Inclusive teve um negócio engraçado. Eu pude ter a experiência do que é uma droga pesada. Porque arroz depois do sexto dia, rapaz! Mastigava cem vezes! Incrível, você tinha de deixar de trabalhar, prá você sentar e começar a mastigar, cinquenta, sessenta, setenta, oitenta..., a pessoa normal mastigava sessenta, eu mastigava oitenta por que era mais doente. Você pode imaginar, se seu cérebro era de um jeito e você passou quarenta anos absorvendo toxicidades maiores, produtos e produtos que começam a circular no sangue e modificam o cérebro, aí você começa a voltar à mesma toxicidade que você tinha, quando tinha seis meses, rapaz, faz novamente conexões neurais, que você não sabia mais, que o cérebro não sabia mais e é aí que você sabe o que é uma droga pesada.

10. Você acha que, de alguma forma, esta geração internet, voraz por música poderia resgatá-lo, mesmo que isso fosse acontecer dez anos depois da descoberta de David Byrne? Acha que sentiria o mesmo estímulo de retomar sua carreira?

Quando fiz os primeiros instrumentos, em 1978, percebi que, realmente, estava muito avançado para aquela época, tanto que não consegui colocar os intrumentos na rua. Um pouco por causa de problema de cabeça e aí é muito detalhado prá saber por quê eu preferi me sabotar daquele jeito, naquela ocasião. Não gosto de fazer queixa e culpo a mim mesmo. Fiz estes instrumentos, em 1978 e, em 1988, o Instituto Goethe chamou toda imprensa brasileira para ir ver umas bandas americanas que estavam produzindo músicas com instrumentos eletrodomésticos, e era a mesma manchete na Folha, no Estado de São Paulo, defendendo aquilo como algo inédito. Daí que um rapaz que trabalhava na Faculdade Getúlio Vargas, quando estiva mostrando estes instrumentos, em 1978, era um dos redatores da Veja na ocasião e escreveu, de cunho próprio, pois eu não era nem amigo dele e nem o conhecia: “Bem, o Instituto Goethe chamou a gente prá ver umas bandas que trabalham com instrumentos de trabalho ou instrumentos de cozinha e tal. Olha: não tem novidade nenhuma nisso, principalmente, fazendo o que fazia o Tom Zé, em 1978, que, inclusive, já era muito melhor.” Então é o caso de pensar que se eu tivesse tido, também, uma cabeça boa prá deixar aquilo ir pro mundo naquela hora, se eu não tivesse criado problemas com os caras que estavam ali, me ajudando, não tivesse feito coisas erradas, tendo problemas de cabeça, o Brasil ia ter essa glória de ter fundado toda esta música que, depois, passou a circular. Já pensou que coisa importante? Eu não choro por isso, não, pois eu sei que foi tudo por culpa minha. João Araújo, por exemplo, queria me ajudar, era diretor da Som Livre e queria me ajudar, pessoalmente. Tinha sido meu produtor no primeiro e no segundo disco e eu sabendo que ele tinha uma possibilidade de diálogo, fui a ele mostrar os instrumentos, ele mostrou grande interesse e quis lançar pela Som Livre, quis botar no festival da Esso, que era o primeiro festival que ia ter, aí eu não sabia que a gravadora era quem escolhia um artista para botar no festival e eu ia ser “o artista da Som Livre”, meti as mãos pelas pernas, saltei fora da jogada e depois fui convidado para um outro festival do Canal 4 e também achei que não devia participar, que era bobagem. Então, ninguém tem culpa de nada, você mesmo se mata, você mesmo é seu próprio algoz.

11. No show em que você revisitou seu álbum de estréia Liquidação Total, na Virada Cultural, aconteceu o episódio da menina que, furiosa, com a (des)organização caótica do evento, esbravejou, xingou-o e saiu de dedos médios em riste, logo na abertura do show. Pouco foi falado disso na imprensa nos dias que sucederam o episódio. Por alguns segundos você e a banda mergulharam em um silêncio constrangedor. Queria saber qual foi sua leitura do episódio.

Que bom que você lembrou disso, o normal seria eu dizer: “Agora não posso falar disso, que o público está aqui, estamos no horário. Está atrasado e temos que começar!” Os shows anteriores atrasaram e o nosso também, por consequência. Estava preocupado com isso e, ao mesmo tempo, tendo que administrar a situação de abandonar uma pessoa, parecendo que eu estava desprezando a queixa dela. Como é que eu iria parar prá tomar providências com o que estava acontecendo lá fora? Pois foi por isso que eu fiquei parado um pouco, pensando e é engraçado você lembrar disso, pois a gente teve mesmo um momento parado. A moça, depois, veio me contar em detalhes, que a polícia estava maltratando as pessoas, que não liberavam acesso a pessoas que estavam com convites. Lamentável.

12. Dois anos antes houve o quebra-quebra na praça da Sé com os Racionais Mc’s e nos anos seguintes segregaram o rap para o parque Dom Pedro.

É por isso que eu falo que é importante estas festas irem para as periferias, não ficar só aqui no centro. Eu fiz minha primeira Virada Cultural no Anhangabaú e na segunda me mandaram para um CEU na zona leste.

13. Suponho que você lidou com um público diferente. Como foi a aceitação?

Veja bem, você tem que fazer um certo cálculo, pois em qualquer lugar que for tocar sempre será diferente. Você vai ao Teatro Municipal e sabe que não vai encontrar em um show destes aquele mesmo ambiente, é diferente, mas lá, é claro, você precisa tomar o curso das coisas com a platéia, recebendo um feedback da capacidade de interesse que a coisa provoca e fiz até um número improvisado, que a gente faz raramente, e foi uma felicidade, como se as portas se abrissem e eles estivessem livres da televisão, da escravatura da televisão, por uma única noite. Não tem um patrão que quer desenvolver nas pessoas a violência, não tem esse patrão no comando. Tem a alegria.

14. Horas antes, vi um Teatro Municipal assistir extasiado Arrigo Barnabé executar Clara Crocodilo em seus arranjos originais. Convenhamos que não se trata de música gastronômica, de fácil digestão. Você que já teorizou sobre o pagode e o funk, tidos como sinônimos de uma certa decadência de nossa música, o que pensa sobre isso?

Barnabé, há tempos, é um orgulho de São Paulo, mas quando uma coisa acontece aqui e agora é muito perigoso a gente querer julgar. O povo tem de ter toda liberdade do mundo prá fazer o que pensa e o que gosta, qualquer coisa que ele queira ou que ele possa. Agora, há pouco, foi fechada uma orquestra da Petrobrás, no morro do Vidigal, onde as crianças estavam apaixonadas por música erudita. A gente pode pensar isso, que se tiver violência e crime em todos os filmes que passam na televisão, as manifestações mais populares também vão estar encharcadas dessa coisa da violência. No Rio, prá moça entrar em alguns bailes funk precisa assinar documento dizendo que ela permite que façam com ela qualquer coisa que queiram, que dê na telha., do ponto de vista sexual. Isso pode ser um tipo de violência contra a mulher, mas também existe o preconceito, que é dizer que mulher não tem direito a sexo. Veja as coisas como são? Facas de dois gumes, quer dizer, o que é que está implantado na sociedade? É o que tá no filme do Buñuel. O padre vira para a burguesa, a mulher nobre, e diz: “O quê? Seu marido está com a senhora duas vezes por mês? Isso é demais. Uma vez por mês já é o bastante, e nunca por prazer, só pra procriar!” Então, quer dizer, o que é que se fala diante de uma situação como essa? O Buñuel tá dando só o testemunho, e o que acontece com as mulheres do funk, como a Tati Quebra-Barraco? Ele faz um reação contra esta proibição e tem horas que essa reação está na medida exata, é certa e estou de total acordo.