3.11.09

Nirvana nunca mais*


O movimento que nunca existiu; as ressurreições de Kurt Cobain e a morte do rock.

Onipresente, em veículos de imprensa do mundo todo, desde o início do ano, a primeira década sem Kurt Cobain tem servido de mote de fundamentadas teses sobre a representatividade do ícone e do movimento, involuntariamente, capitaneado por ele dentro do imaginário pop recente.

Talvez ainda não seja o momento mais oportuno para inventários acerca da influência da produção musical dos anos 1990, pois muitas das facetas reveladas por esta década de transição ainda estão em contínua ebulição. Vide a nova ressurreição do rock celebrada por esta cena de bandas como os Strokes, Kings of Leon, White Stripes, The Vines e afins que, méritos criativos à parte (ou a ausência destes), traz novamente à tona uma grande leva de bandas que emergem das camadas subterrâneas dos selos e circuitos independentes para escalarem as grandes paradas americanas e européias, rumando pelo mesmo caminho trilhado pela geração pós new-wave e o furacão do-it-yourself do punk.

Fato é que, hoje, este suposto espírito de renovação bradado pelos entusiastas deste velho rock de nova embalagem só encontra legitimidade nos experimentos que, sem pudor, apostam em uma alquimia livre de gêneros e ritmos, pois se houve algo de realmente transitório na produção musical dos 1990, seu maior campo de propagação construi-se em torno do fim da dicotomia entre a música orgânica e a música mecânica. Este velho demônio que conduziu o rock e outros gêneros à fadiga criativa vem sendo progressivamente exorcizado no eclético laboratório de niilismo estético de uma geração que, lentamente, condena a figura do compositor e da canção, tal qual a conhecemos no século passado, a um lento fim. Vide o culto ao DJ, a propagação do sampler em gêneros musicais alheios ao universo do rap e da música eletrônica e as novas ferramentas de criação e distribuição musical ensaiadas pela internet.

A pergunta que fica: o que tudo isso tem a ver com Nirvana e Kurt Cobain? Tudo e um pouco mais. Ícone maior do que ficou conhecido como grunge, Cobain, aprisionado à tormenta de sua dependência química e em meio às frustrações com sua meteórica ascensão, sobretudo, devia sentir-se muito decepcionado por ter se tornado ícone de um movimento que nada representou e, de fato, nunca existiu.

Com a explosão de Nevermind e o inesperado sucesso de seu primeiro single Smells Like Teen Spirit a imprensa musical mundial e, consequentemente, a indústria fonográfica, abriram olhos para o fato de que, em cenas locais isoladas, havia uma enorme quantidade de bandas que, oportunamente colocadas lado a lado, poderiam vender uma imagem de unidade em torno de uma revisão inovadora de gêneros, aparentemente, tão próximos como a água e o azeite. A maior via de tráfego estético destas bandas era um som híbrido da urgência punk com o peso e a densidade das bandas embrionárias do heavy-metal. Sex Pistols e Black Sabbath; Blue Cheer e Black Flag. Como uma equação matemática, o som autêntico de bandas oriundas de celeiros do rock independente, como as dos selos Matador! e Sub Pop, berço primeiro do Nirvana, foi transfigurando-se em uma avalanche de cabeludos uniformizados com camisas de flanela, gorros e cavanhaques - cavanhaques estes que, diga-se de passagem, caíram no gosto popular por aqui e, até hoje, estão onipresentes em diversos círculos que pouco ou nada tem a ver com a muralha de decibéis de bandas como Mudhoney, Screaming Trees e Love Battery.

Em suma, de uma forma muito precoce, aconteceria com o grunge o mesmo que ocorreria com o psicodelismo nos anos 1970 e com o punk e pós-punk nos anos 1980. Manifestações que nascem autênticas, são absorvidas pela indústria, rapidamente, embaladas para consumo e dispostas em prateleiras de hiper-mercados e vitrines da alta moda. O que foi vendido em larga escala e defendido até hoje como grunge não passa de uma equivocada coleção de caricaturas das bandas mais representativas e obscuras. Alice in Chains, Pearl Jam e derivações bastardas como Stone Temple Pilots, Collective Soul e Creed formaram um verdadeiro laboratório de clonagem. Muita flanela e cavanhaque, pouca despretensão e legitimidade.

Emblemático desta incoerência é o caminho traçado, ao longo destes dez anos, pelo líder do Soundgarden, o gogó de ouro Chris Cornell que, apesar de támbem ter surgido na Sub Pop e assinar álbuns menos afetados naquele começo de anos 1990, foi praticar sua técnica David Coverdale no supergrupo Audioslave, ao lado dos remanescentes do Rage Against the Marchine, PSTU do rock americano dos anos 1990 que, à despeito de ter mais personalidade do que as bandas citadas acima, também surfou nas ondas progressistas e na larga avenida aberta por Cobain para uma infindável lista de lixo musical aglomerado em um rótulo genérico, à princípio chamado de grunge - termo este utilizado por Bruce Pavitt, sócio da lendária Sub-Pop, para definir o som feito pelo Mudhoney no final de 1988, três anos antes da revolução de Cobain -, até chegar aos genéricos dos genéricos, o rock alternativo, o famigerado indie-rock e afins.

É por estas e outras que, aparentemente, deitado ao lado de Cobain em sua tumba, aos 40 anos, o rock, em suas facetas mais ortodoxas, parece ter morrido de vez e seu fantasma pode até ensaiar outras ressurreições, mas as grandes questões que, hoje, não querem calar foram germinadas em oposição a suposta revolução do mártir Cobain e, mesmo que ainda não tenhamos nomes que possam instaurar um precoce cânone desta transição, o ambiente de experimentação está aí, fervilhando à espera de respostas. Candidatos?

ESQUEÇA O GRUNGE
Um gênero que nunca existiu e dez bandas fundamentais de uma época

Pixies - Egressa dos anos 1980, construiu ao lado dos Jesus & Mary Chain e do My Bloody Valentine todo um referencial estético de bandas que nasceriam na década seguinte, incluindo-se aí o Nirvana. Em 1991, mesmo ano de lançamento de Nevermind, lançaram seu canto do cisne, o genial Trompe Le Monde.
Mudhoney - Pioneiros da fusão psicodelismo/garage-rock/proto-punk, adicionada a uma muralha de decibéis, lançaram vários títulos antológicos pela Sub-Pop, como Superfuzz/Bigmuff, Mudhoney e Every good boy deserves fudge.
Swervedriver - Contemporâneos do Nirvana, estes britânicos de Oxford, pela aparência lastimável, pela urgência de suas guitarras e belas melodias, logo, angariaram o rótulo de crusties, equivalentes ao grunge defendido por Bruce Pavitt .
Afghan Whigs - Liderados pelo grande compositor Greg Dulli, os Afghan Whigs curiosamente nasceram do inusitado encontro de Dulli e o 2º guitarrista em uma cela de delegacia e estreitaram a distância entre o rock e a soul music criando uma sonoridade única.
Pavement - Slanted & Enchanted, o albúm de estréia destes californianos escancarou, sob a sombra do Velvet Undergound, a estética lo-fi no rock. Ouça este álbum e tente encontrar alguma novidade em bandas celebradas, como os Strokes.
Teenage Fanclub - Este quarteto de escoceses renovou em uma enorme lista de belas canções, o melhor do rock dos sixties, seguindo a cartilha power-pop de bandas como Big Star, Byrds, Beatles e Buffalo Springfield.
Ride - Sem a contribuição destes britânicos e dos Stone Roses, Oasis e o tal Britpop jamais existiriam da forma que conhecemos.
Primal Scream - Egresso do lendário Jesus & Mary Chain, Bob Gillespie e sua turma revolucionariam o rock com Screamadelica e abririam caminhos para a fusão de gêneros e a inclusão, sem traumas, de recursos dançantes da eletrônica no imaginário rock.
Dinosaur Jr. - Liderado pelo exímio guitarrista J. Mascis este trio de Boston levaria a equação belas melodias/guitarras urgentes de Neil Young e seu Crazy Horse à enésima potência. Realizaram grandes álbuns até 1992, após Where you Been, a formação original se rompeu e o baixista Lou Barlow lançou grandes álbuns à frente de seu grupo Sebadoh, como Smash Your Head on Punk Rock e Bakesale.
Mercury RevLiderados pelo dissidente dos Flaming Lips, Johnnathan Donahue, o Mercury Rev levou às últimas consequências o laboratório psicodélico de sua antiga banda em títulos como Yerself is steam e Boces.

*Originalmente publicada na revista Elenco, edição 2 (2004).

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