3.11.09

América em transe*


Obra-prima de José Agrippino de Paula, Panamérica é reeditado pela Papagaio (foto Mari Stockler, Agrippino aos 30 anos de idade)


Nestes tempos em que o flerte entre a literatura e o universo pop tem sido bastante celebrado, capaz de derivar-se com a velocidade de um produto, nada mais grato do que o anúncio da reedição de um autêntico expemplar dos experimentos literários dos anos 1960. Chegando tardiamente à sua terceira tiragem, Panamérica, de José Agrippino de Paula, faz Nick Hornby, o darling britânico obcecado por listas, parecer um dos cinco menos interessantes escritores jovens do mundo.

Apesar de compulsivamente citar referências pop, Agrippino constrói em Panamérica um anárquico mosaico de experimentações e evidente desprezo pela narrativa convencional. Instigante e provocador, o segundo romance de Agrippino, publicado em 1967, em nada se assemelha com o romanesco pop atual. É uma espécie de "Odisseia", tresloucada, que ao lado de Terra em Transe, de Glauber Rocha, a peça O Rei da Vela, de Zé Celso Martinez Corrêa e a instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, ajudou a fomentar os ideais estéticos da onda tropicalista de Gil, Caetano, Os Mutantes e Tom Zé. A obsessão de Agrippino pelo imaginário pop não surge como mero suporte da personalidade do protagonista, tampouco por vaidade do autor. O romance tem um narrador que surge nas páginas copiosamente identificado como “eu”, que, em seus delírios verborrágicos, envereda em uma egotrip pelos campos díspares da gigante e multifacetada América.

Cercado por anônimos ou comandando 200.000 figurantes em Hollywood; ao lado de Che Guevara, Harpo Marx, John Wayne e, lascivamente, envolvido com a finada Marylin Monroe, o protagonista de Panamérica transita pelas grandes contradições desta ambígua extensão de terra que compreende as américas do sul, central e do norte. Perplexa com o desbunde da juventude baby boomer, que cresceu com os milagres do Pós-Guerra e confrontou os estatutos de seus pais, a auto-intitulada “América” (os EUA), do final dos anos 1960, vivia sob a ameaça do comunismo e de uma crescente onda de rebeliões juvenis, dentro de casa. Fora dela, compactuava com o autoritarismo e até financiava a repressão, para conter a vulnerabilidade ideológica de seus miseráveis vizinhos, abaixo da Linha do Equador.

O romance foi lançado pela Civilização Brasileira no mágico ano de 1967 e esta terceira edição traz um invólucro com recomendações de Caetano Veloso, extraídas do prefácio assinado pelo compositor. Estratégia supérflua esta. O livro fala por si e ainda exala o mesmo frescor daqueles anos revolucionários. A Papagaio promete a reedição de Lugar Público, a estreia de Agrippino, fortemente influenciada por William Faulkner, lançada em 1965.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 22 (2001).

Nenhum comentário:

Postar um comentário