6.11.09

Entrevista Wilson das Neves - Íntegra

Íntegra da entrevista realizada em janeiro de 2009 com Wilson das Neves, base do texto O som quente e o dom de Wilson, publicado em Março na revista Brasileiros (foto: Luiza Sigulem)

As biografias que pesquisei são unânimes em afirmar que você iniciou no instrumento aos 14 anos. A partir daí, você teve estudos teóricos ou foi um aprendizado autodidata?
Não, eu não fui estudar aos 14 anos. Nessa idade eu ia muito ao candomblé. Aliás, desde muito garoto eu era fascinado pelo tambor de candomblé, pois minha família é candomblecista. Somos todos negros, aliás, afrodescentes, pois, hoje em dia, não pode chamar de crioulo, se não, ofende. Comecei a estudar o instrumento mesmo com 18 anos, quando estava no exército, em 1954.

Antes disso, como era o menino Wilson? Já tinha interesse por música, influências familiares?
Sempre gostei muito de música, mesmo porque eu tinha uma tia que quase toda semana, por qualquer motivo, dava festas em casa. Aniversário do cachorro e ela dava festa. Ela gostava de ver a casa sempre cheia de gente e a música era um elemento que não podia faltar. Havia muitos álbuns de jazz bands que tocavam nas festas dela e eu ficava, ali, prestando atenção a tudo. Rolava também, música regional, grandes orquestras. Um ambiente que muito me estimulava e foi lá que eu conheci um baterista que começou a tocar na casa dela, quando as festas passaram a ter música ao vivo, chamado Edgard Nunes Rocca, conhecido por todos como Bituca.

Bituca era professor profissional?
Não. Eu ia aos bailes, acompanhando o Bituca, como uma espécie de roadie. Estava com 18 anos, servindo o exército, e decidi ajudá-lo nos bailes porque não tinha dinheiro para entrar. Enquanto ele tocava, eu ficava dançando por ali, e tal, depois, ao final do baile, eu o ajudava a levar o instrumento de volta e assim foi, até que um dia ele perguntou se eu não gostava de bateria, disse que sim e ele me aconselhou: "Mas, então, por que você não estuda o instrumento?!". Eu não tinha referência alguma, mas ele me levou a uma escola e comecei a estudar. Depois disso, ia ao baile com ele e já não dançava mais, ficava ali, do lado, de olhos e ouvidos atentos, aprendendo. Depois de um ano e pouco, o Bituca saiu da orquestra. Fiquei no lugar dele e estou até hoje tocando por aí.

Neste período, ainda havia muita resistência à invasão da bateria no samba?
Não, nesta época a bateria já era bem aceita e difundida. A resistência tinha ficado pra trás. Acontece que a bateria não é um instrumento que o americano criou para tocar samba, ela foi criada para tocar a música deles. Já na década de 1940, a bateria chegou fortemente ao Brasil e começamos a fazer nossa tradição. Nesse período, embora anônimos, já havia grandes bateristas. Músicos que liam e escreviam música.

Algum grande baterista deste período que você destacaria e não é lembrado?
Não, mesmo porque nossa memória é curta. Não se creditava, não se filmava, não se registrava nada. Músico profissional era anônimo mesmo e, por incrível que pareça, na grande indústria, quem começou a colocar nomes dos músicos nos créditos dos discos foi a Elis Regina. Quase nos anos 1970, quando toquei com ela. Antes disso, ninguém dava a menor atenção, saíam nos créditos o compositor e só, nem o nome do maestro que arranjou o disco era respeitado.

Você fez parte de uma geração de grandes bateristas, como Milton Banana, Edison Machado, Airto Moreira e o Dom Um Romão. Todos com um estilo personalíssimo, mas ligados à cadência da bossa. Particularmente, a quê você acha que se deve a famosa "batida diferente" da bossa nova? Foi mero casamento do samba com o jazz?
Para mim, bossa é samba e samba é um ritmo muito complexo. Se você observar bem, ninguém toca igual a ninguém, mas tudo deriva do samba e tanto faz se é bossa nova. Dêem o nome que quiserem dar: é uma variação do samba e cada um toca do seu jeito. Agora, lógico, que na bateria tocada por aqui, sempre houve muita influência americana. O instrumento não foi criado para tocar samba e os métodos são todos americanos. Para fazermos um método de samba para bateria no Brasil teremos que enfrentar problemas seríssimos, como investir em partituras.

Neste seu início de carreira, ainda nos anos 1950, você teve um envolvimento intenso com a música erudita. Tocou na orquestra Ubirajara Silva e chegou a integrar a filarmônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Como foi essa ligação? Havia mesmo interesse em prosseguir na música erudita?
Não, o que me movia mesmo era a curiosidade das descobertas e o fascínio do aprendizado. Minha intenção não era dizer "vou tocar no Teatro Municipal". Queria mesmo era vivenciar aquele universo da música erudita, mas, daí que eu continuava indo ao candomblé, gostava de música popular e, se você for ver bem, em uma sinfônica, nas horas vagas, quase todos os instrumentistas, metais, cordas, sopro, trabalham com música popular. Minha intenção era aprender com propriedade e acho que aprendi. Toquei em importantes espetáculos, como Mefistófoles e Aida, era como estar no céu, no olimpo, mas, pouco tempo depois, abandonei esse ambiente da música erudita, pois não me pagavam direito e eu vivia de música.

O período que sucede a explosão da bossa revelou grandes instrumentistas e percebe-se nos créditos de grandes álbuns do período que boa parte desses músicos trafegavam pelas mesmas gravações. Como era esse ambiente? Havia alguma espécie de competição ou era mesmo forte a ligação entre essa turma?
Não, ao menos eu acredito que não havia competição. As gravadoras chamavam os músicos que podiam resolver o problema. Não se chamava por simpatia, pelo nome ou pela cor. Nada disso. Era essencialmente a questão do músico que resolve, entende? Os arranjadores tinham uma relação de músicos que podiam contar e que se encontravam nos estúdios com frequência. Em geral, eles se baseavam pelo seguinte critério: "Chama fulano! Ah, fulano não pode?! Então chama sicrano!". Chamavam quem resolvia e ponto final!

Mas nos combos de samba-jazz aí, sim, a relação era de verdadeira afinidade, não é?
Sim. Com a afinidade, começaram a surgir os trios e os quartetos no ambiente da bossa. Por um breve período, valorizou-se a música instrumental, que não era prestigiada por aqui. Até hoje no Brasil é muito complicado. As pessoas não ouvem música instrumental, não tem conhecimento. Tem uma minoria que gosta, mas, enfim, daí, vieram os conjuntos, as orquestras de baile, com crooner e tudo.

Ao longo destes cinquenta anos de carreira, você teve a honra de participar de uma infinidade de álbuns que são considerados obras-primas da música popular brasileira como o Coisas, do maestro Moacir Santos. A despeito destes álbuns unânimes, houve algum que te surpreendeu, com um resultado final maior do que a expectativa?
Olha, eu gravei com mais de seiscentos artistas, gosto de tudo que fiz e faria tudo de novo. Quando eu sento no meu instrumento, eu não sento prá brincar, não. Sento prá fazer direito ou pelo menos tento. Lógico que tem coisas especiais. Imagine você como eu fiquei, quando o meu professor de harmonia, Moacir Santos, me convidou prá gravar com ele. Fiquei, como diria o Chico Anísio: "Com o peito em festa e o coração à gargalhar". Fiquei feliz da vida por ele ter me chamado prá gravar com ele.

À propósito deste período, existe uma polêmica de que o Neco, seu parceiro no conjunto Os Ipanemas, seria o verdadeiro autor do álbum Samba Nova Concepção, creditado ao Eumir Deodato à frente dos Catedráticos. Você, que esteve presente, conduzindo a bateria, o que diz à respeito?
Não, o álbum não é do Neco, não. O Eumir Deodato é um grande arranjador. Chegou moço, escrevendo bem, escrevendo bonito. O Neco era integrante dos Catedráticos, tocava violão no disco, mas isto é intriga da oposição. O Lyrio Panicalli, o grande maestro, queria ir lá ver as partituras do Eumir, prá analisar, prá ver como é que era, pois já era uma coisa diferente. Muito precoce. Daí, talvez por isso, que já diziam que não era dele. Mentira. Era dele, sim. Gravei e toquei com ele.

À propósito do Deodato, Sérgio Mendes, Dom Um, Raul de Souza, Marcos Valle, Airto e Flora. Um sem número de músicos brasileiros fizeram carreira e permaneceram no exeterior. Como foram suas passagens por terras estrangeiras? Permanecer no Brasil foi uma escolha pessoal?
Eu nunca tive a intenção de morar fora daqui, não. Opção minha. Acho que minha terra é aqui. É aqui que eu vou fazer tudo que eu tenho que fazer. Vou lá, toco, gravo; já fui várias vezes, já acompanhei vários artistas, mas meu lugar é aqui. Agora, trabalhando com o Chico, há vinte e cinco anos, rodo o mundo. Aliás, essa semana ele me ligou prá me cumprimentar, porquê, sou bisavô. Tenho um bisneto, Joãozinho, filho da Graça. Tá lá me dando prazer e tenho que agradecer a minha neta, por me fazer bisavô vivo, porque bisavô morto não adianta nada!

Depois de sair do ambiente da bossa, quando você inicia uma carreira solo, partindo do Juventude 2000 (1968), e nos outros dois álbuns que viriam, à seguir, à despeito de ainda haver vestígios de brasilidade, sua música passa por uma guinada radical, pois vai somando elementos mais modernos, universais e se fundindo com o funk, com o soul, o jazz latino. Como foi essa mudança? Houve intervenção de produtor, direção artística, ou foi tudo planejado? Que som fazia sua cabeça ná época?
Olha, papo meu e do Geraldo Vespar que fez os arranjos do primeiro disco, Juventude 2000. Papo nosso: "Ah, vamos fazer uma coisa assim mais ousada, com uma intenção de atingir a garotada". O nome do disco já sugere isso. Agora, olha eu gosto de tudo, gosto de música. Não gosto de barulho, nem negócio de: "Saiu um som!" Qualquer instrumento bem tocado me faz bem. Tem gente que não gosta de Astor Piazzolla. Então, não gosta de nada. Eu gosto de tango, como qualquer outro ritmo. Música é universal. Música não fala, toca.

À partir dos anos 1980, você volta a assumir o papel do homem de estúdio, e volta a trabalhar com uma infinidade de músicos brasileiros. O período foi marcado pela explosão do rock no Brasil e uma aparente estagnação da mpb. Você compartilhava desta sensação? A escolha de voltar a tocar profissionalmente tem a ver com isso?
Olha, quando você gosta do que faz, não vê problema em nada. Como diz o Nelson Sargento: “O samba agoniza, mas não morre!” e, então, tá vivo aí. Ele cai um bocadinho e se levanta, quando é bom samba, porquê, no meio de tanta coisa que se grava ou se gravou na bossa nova, no meio de tanta coisa de ontem e de hoje, tem muita sandice. Tinha bossa sandice, como também tem olodum sandice, pagode sandice, axé sandice. Tem os bons e os sofríveis. Não vou eu dizer que são ruim, porquê se faz sucesso prá um milhão de pessoas, quem sou eu prá dizer que é ruim, não é? Agora tem muita coisa que é sandice e isso aí precisa falar mal mesmo.

Desde 1997, você resolveu levar à público os dotes de cantor e compositor, lançando dois álbuns de canções, o que é irônico, se considerarmos que, praticamente no mesmo período, sua carreira começa a ser redescoberta por uma juventude que fica fascinada pelo seu envolvimento com a música instrumental. Como foi tomar esta decisão? Cantar e compor era segredo antigo?
Eu já tinha gravado sete, oito álbuns instrumentais. Me convidaram prá gravar mais um e eu falei: não quero! Era um projeto, Performance, que tinha na CID. O Esdras, produtor, me convidou: "Vamos fazer um disco instrumental?" Ah, fiz tantos, você tem que ficar convidando colega prá te ajudar e sabe que instrumental não dá dinheiro, é na faixa e eu falei: "Se é prá gravar assim, eu quero gravar minhas músicas". Eu tinha já muitas músicas, mas não tinha a ousadia de gravar, nem de mostrar prá ninguém.

E você vem compondo, desde quando?
Desde mil novecentos e setenta e pouco, que venho compondo minhas músicas. Compondo e guardando. Daí, que resolvi gravá-las, em 1997, mas minha idéia não era cantar. Era montar o meu conjunto e ia trazer um intérprete, cantor, cantoras. Então o Esdras me pediu: "Traz tuas músicas pra gente ouvir". Ele ouviu e falou: "Muito bom, vamos gravar!" Eu disse: "Então, vamos, mas quem é que vai cantar?" No que ele respondeu: "Do jeito que você está cantando aí, canta você mesmo". Daí, que virei cantor. Não foi programado, nem tive a intenção de ser cantor. Aliás, na minha vida não tem nada programado. A única coisa que tem progamado na minha vida é: quero ser feliz!

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