3.11.09

Memória de chumbo*


O terror da ditadura transformado em ode à liberdade em Lembrar é Resistir**

Do lado de fora do antigo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, um grupo de pessoas aguarda em fila, cada uma delas portando uma ficha de identificação. Já no interior do prédio em ruínas, são recepcionadas por um homem que registra suas impressões digitais no verso da ficha. Quando a fila se encerra, a porta por onde todos entraram é trancada, com determinação, por um segundo homem e as pessoas ali reunidas embarcam em uma angustiante viagem pela história recente de nosso País.

Idealizado para celebrar os vinte anos de promulgação da anisitia e recordar o período sombrio que sucedeu o golpe militar de 1964, o espetáculo Lembrar é Resisitir comemora um ano em cartaz, promovendo uma comunhão reflexiva entre atores e público e resgatando um passado que, graças aos mecanismos de esquecimento propagados pela imposição do silêncio e ao ufanismo do milagre econômico, financiado às custas de uma dívida externa escabrosa, poucas vezes foi tão bem elucidado.

Toda a ação da peça se desenvolve nas dependências do extinto DOPS, provocando uma interação automática do público com os atores. Alguns nomes da produção, como Izaías Almada, que assina o texto com Analy Alvarez, foram encarcerados naquele mesmo lugar e testemunharam muitos dos momentos resgatados na peça. O texto baseia-se em fatos reais, mas apropria-se da ficção e registros da época para celebrar, com delicadeza, a força dos que resistiram com o próprio sangue, fazendo perseverar a democracia e a liberdade. Sem jamais recorrer à representação explícita da violência praticada contra os prisioneiros, o texto enclausura o público no drama individual de cada relato apresentado, possibilitando uma rica aproximação com o panorama coletivo da época.

Peregrinando pelos escombros do velho edifício, a platéia, progressivamente, absorve a amarga atmosfera que envolveu aqueles dias. Acompanhando a trajetória de Marcelo, ator que é preso logo no início da peça, visitamos a sala do superior dos dois agentes que encarceraram o rapaz. Ao fundo da mesa do homem, uma bandeira brasileira e um poster assustador do general Médici, simbolizam os anos de chumbo. Entre divagações sobre futebol, abuso sexual de prisioneiros e carreiras de cocaína, o homem atenta a equipe para o fato de que devem prender mais subversivos e que cada prisão deverá gerar, através de delações sob tortura, pelo menos mais seis presos. Tais metas fazem parte de uma concorrência interna da instituição onde as equipes com maior número de presos recebem premiações em dólar.

Neste ambiente de sórdida competitividade, mergulhamos no inferno do cárcere, visitando celas e prisioneiros políticos das mais diversas origens: atores, atrizes, cantoras, padres e até a mãe analfabeta de um subversivo, presa como isca para que os militares cheguem ao filho. Cela após cela, o público testemunha as atrocidades cometidas em nome da ordem e se comove, às lágrimas, com a força hercúlea de quem resistia.

No decorrer do espetáculo, é possível fazer uma leitura cronológica dos fatos históricos que levaram a abertura política. Pressionados pelo sequestro de um embaixador americano, os militares são obrigados a libertar 70 presos políticos que serão exilados no Chile, entre eles, um padre é escolhido e passará a integrar o grupo dos que, vivendo clandestinamente em outros países, denunciariam o silencioso holocausto à entidades internacionais que defendiam a anisitia e os direitos humanos, provocando forte repercussão internacional e alertando a opinião pública brasileira sobre os excessos cometidos pelo regime.

No ato que antecede a promulgação da anistia, o público é conduzido a uma cela vazia onde um cinto de couro que pende do teto, formando uma forca, alegoriza o suposto suicídio do jornalista Vladmir Herzog. Os laudos que confirmaram o assassinato de Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do II Exército, culminaram na demissão de seu comandante, o general Ednardo D’Ávila e, logo mais, na demissão do ministro do exército, Sylvio Frota. O caminho para a abertura era irreversível.

Aos que vivenciaram o período sem jamais ter a possibilidade de compreender tais fatos e aos que observam o passado, sustentados pela liberdade que herdaram desta geração marcada pela dor e pela opressão, Lembrar é resistir revela-se, ao final, muito mais que um convite para exorcizar o passado, pois mesmo que a luta pela democracia não tenha sido em vão, os propósitos que moveram estes jovens à sangrenta trajetória aqui representada, ainda continuam a espera de soluções. Aos que ainda carregam dúvidas, o retorno ao mundo miserável do centro de São Paulo, oculto através da porta que nos credenciou a este belo exercício de reflexão, oferece uma lamentável prova de que, sim, ainda há muito por fazer.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 20 (2000). **Foto: Nezito Reis (relação dos nomes, aqui)

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