23.1.10

Tom Zé Nu & Cru - Íntegra da Entrevista


Em Setembro de 2009 publiquei reportagem com Tom Zé, na revista Brasileiros. O texto tem apenas excertos da extensa entrevista, que agora posto na íntegra

1. No programa de calouros Escada para o Sucesso, em sua estréia na tv. você defendeu o tema Rampa para o fracasso e foi chamado de “Juca Chaves dos Pobres” pelo jornal Diário de Notícias. Foi a irreverência sua melhor arma para romper com o que você chamou de corpo cancional e sua formalidade?

Deixe-me ver se lhe dou uma idéia do que aconteceu no começo. Eu procurava alguma coisa prá me segurar no mundo, esse é o motor primeiro, é o ponto de partida e música não era assim uma coisa que estava muito evidente, não tinha nada daquilo de dizer: “ Aos oito anos de idade mostrou, logo, sua vocação!” Era o caso de dizer: “Aos oito anos de idade mostrou que não tinha a menor vocação para a música”. E tem um episódio curioso nessa época. Um dia o professor da escola, que tinha um vocabulário gozado, Arthur de Oliveira, ele falou: “Isso aqui é um negócio democrático, se você quiser tocar a caixa ou o tambor, aqui na escola você pode. Qualquer um pode, qualquer um tem o direito de passar pelo exame”Aí, falei: “Ah, vou tocar este tambor!” Fiquei num contentamento e, na minha imaginação, eu saberia tocar aquilo perfeitamente bem. Peguei o tambor com toda animação, dei as duas primeiras batidas e ele falou: “Você não tem jeito prá isso, me dá o tambor!” Se eu tivesse a capacidade de argumentação que hoje, talvez, tenha eu teria dito: “Mas espere aí, o senhor na verdade não me deixou tocar, eu nem firmei o ritmo, nem tive o contato com o objeto, que é estranho prá mim”. Eu não sabia que ali atrás estava um preconceito impressionante e uma coisa curiosíssima, que era dizer que filho de rico não se dedicava à música, que música era uma profissão de pobre. Mesmo assim, tinha uma pessoa que, desde cedo, estava me preparando prá eu ser artista, sem eu percerber: Renato Portela Martins. Ele tinha uma família católica, como a minha, mas meu avô tinha mandado os filhos prá universidade e isso foi uma loucura. Universidade era uma coisa improvável e, na família de meu avô, três ou quatro se tornaram comunistas. Meu tio Fernando, que foi presidente da UNE, era um comunista famoso e ser comunista era uma coisa muito perigosa. Esta família de Renato era uma família católica e tinha um ódio da gente, terrível, mas Renato, um dia eu jogando futebol, com uns dez anos de idade, contra o time de Alagoinhas, que era muito melhor do que o nosso, um futebol mais desenvolvido, dizia prá mim: “Tom Zé”, jogue com a cabeça!” Esse foi o primeiro enigma que eu tive de decifrar, porquê, em se tratando de um jogo de criança é muito mais pelo chão que pelo ar, e até eu compreender que jogar com a cabeça não era suspender a bola prá chutar e dar de cabeça, entender que era uma metáfora, foi um percurso intelectual e Renato era uma criatura assim, parece que tinha a percepção de que, quando jogava sementes no terreno que era eu, que essas sementes um pouco medravam, um pouco cresciam e ele era sempre de dizer coisas pensadas, por exemplo, um caso que ele contava, uma coisa tão matemática e tão bonita que eu gravei desde criança. Dizia que pegaram um velho e perguntaram se ele tinha sido feliz e ele disse: “Não, prá ser feliz precisa ter três coisas. Eu tive estas três coisas, por muito tempo, mas não tive elas três juntas. Prá você ser feliz, você precisa ter: dinheiro, tempo e disposição; então, quando eu era pequeno, eu tinha tempo e disposição, mas não tinha dinheiro; quando eu era adulto, eu tinha disposição e dinheiro, mas não tinha tempo; agora, que estou velho, tenho tempo e dinheiro, mas não tenho disposição! Naquele tempo, ser feliz prá mim, significava uma certa possibilidade de ter namoradas, de ter uma frequencia amorosa mais volumosa e fiquei pensando que prá eu achar estes três dados, com a impossibilidade do ser humano em ter todos os três juntos, nestas três fases da vida, seria tão difícil, quanto decifrar a esfinge, mas Renato deu os detalhes finais prá eu entrar em música, e eu ia pro jardim, às cinco horas da tarde, os rapazes e as meninas trocavam de roupa e iam pro jardim e quando chegava perto, já avistava alguma menina, e não tinha a menor sorte com moça, não tinha namorada e o escambau, aquilo ia me dando um sofrimento filho da puta, mas era algo que só o fato de você ficar no jardim com as meninas por perto já era um alívio. Sei que quando eu ia chegando ao jardim, Renato vinha passando com um violão na mão e disse: “Tom Zé, eu agora não toco mais flauta”, eu realmente sempre o via com uma flauta transversal preta, a grande maioria era de metal mas a dele era de madeira e ele disse: “Não toco mais flauta, agora toco violâo, que é muito mais bonito!” Naquela hora em que Renato começou a tocar ali, eu passei por um alumbramento, por uma daquelas coisas que fazem o mundo girar e você entra numa espécie de estado mental alterado, em que você não compreende nada, aquela coisa que borbulha, que ferve dentro de você, e ele falando na minha frente e eu já tinha esquecido as meninas, já tinha esquecido tudo e não me lembro do que se seguiu, sei que no dia seguinte eu estava mandando comprar um violão, o próprio ajudante dele era dono da marinete de Irará, o único meio de transporte que Irará tinha prá fora. No dia seguinte eu estava comprando o violão, um método, e estava tentando começar a aprender.

2. Você passou um longo hiato sem compor, de 1961 à 1968, no período em que estudou na Universidade Federal da Bahia, com Koellreutter e Widmer. Quandou voltou a compor, mergulhou na guinada radical que foi o Tropicalismo, uma oposição extrema à visão reducionista do CPC. Acha que sua carreira se desdobraria de que maneira, se não tivesse experimentado estes anos na UFB? Acha que uma maior atividade no CPC revelaria um Tom Zé afeito a canções sisudas, de protesto?

Você tem razão, o fato de não ter me apaixonado pelo comunismo é uma coisa muito importante. Na minha família já tinha até um exemplo igual, tio Fernando era um comunista sempre rebelde à autonomia, tanto que ele era a figura mais importante do comunismo na Bahia, além de ter sido secretário-geral do Partido Comunista por alguns mandatos, era rebelde por natureza, e o partido tinha que engolir ele porque ele era tão eficiente prá tratar com o povo, que acabava recebendo votos de pessoas que não eram comunistas, e eu tinha uma admiração, impressionante, por ele. Naquele ano em que ele foi candidato, em 1961, ele e a mulher me tiraram de Irará, e eu acompanhei a campanha de tio Fernando. Quando a gente era mais novo, não tinha como não ser esquerdista, mas eu nunca fui do partido e não acho que o partido seja indigno. Não fui ao partido, pois não tive vontade de ir, mas quando fui diretor de música do CPC, fui graças à Nemésio Sales, que tinha sido secretário geral do partido, e que, quando eu tive um desentendimento na casa de meu tio, que ia voltar para Irará, me fez ficar em Salvador. Devo o fato de estar aqui, hoje, a Nemésio Sales, que me deu condições de ficar. Era o Partido Comunista, o velho partidão quem me pagava. Tenho este débito com ele! O velho partidão, me pagava trinta cruzeiros por mês. Eu era diretor de música do CPC e com estes trinta cruzeiros por mês eu pagava a divisão do apartamento do próprio Nemésio, dividido por eu, Alberto Bandeira, que era o então Secretário Geral do Partido Comunista, e o cineasta Geraldo Fidélis Sarno. Éramos os habitantes deste apartamento que foi o primeiro lugar invadido na hora que estourou o golpe de 1964. Lembro da capa de uma daquelas revistas Realidade, um homem com um peixe sendo fisgado, uma reportagem sobre a pesca artesanal. Ora, naquela época, o próprio censo dizia que a população iria dobrar e que a capacidade produtiva de alimentos precisva dobrar, prá não matar metade destas pessoas de fome. A capacidade da pesca artesanal, nunca iria chegar perto do que seria necessário, seria preciso desenvolver a pescal industrial e como é que eu vou defender, como é que nós vamos defender este tipo de Brasil bucólico que a esquerda queria, este tipo de Brasil que não abre as fronteiras prá modernidade, prá poder matar gente de fome? Se não produzir comida, vai comer o quê? Tinha argumentos como esse que também explicam muito porque o Brasil bucólico, que a esquerda queria, não podia se conformar com o Brasil que, na veradade, Caetano e Gil introduziram na cabeça das pessoas, aquilo que mesmo sob a égide de uma ditadura, ia levar o país a um salto imediato prá segunda revolução industrial. Hoje somos um dos países que mais usa internet, coisas que são absolutamente necessárias prá civilização. É capitalista, é o escambau e a coisa toda, mas nós também somos um povo civilizado. Eu tenho uma canção agora, que não foi nem cantada ainda, que eu digo que Caetano e Gil deram a vela prá nosso barco poder fazer a viagem, poder fazer nossos primeiros computadores. Nós fazemos essa porra, hoje! Nós, toda vida, fomos povo inventor, toda vida fomos povo que estava na frente das coisas: na hora que o avião ia subir, tivemos uma pessoa lá; a guitarra que outro dia tava no jornal: morreu o pai da guitarra! Pai da guitarra, uma porra! Pai da guitarra é Osmar, que a fez muito antes, e é bom dizer que Santos Dumont só tem o nome dele citado, porquê a França tem grana e o sobrenome dele era Dumont, e porque ele tava lá em Paris, se não os irmãos Wright seriam os únicos donos da aviação e era isso: Caetano e Gil, conscientemente, estavam lidando com estes status. Este é o tropicalismo deles. O Brasil já nasceu tropicalista, não tinha história e, se não tivesse sido gente como eles, prá representar o que fomos em nossa história, isso aqui seria o quê? Eles foram importantes por trabalhar com música popular. Uma coisa que tem uma inserção impossível de se imaginar e, então, ao mesmo tempo tem uma atitude repressiva como ditadura e o que é que ela quer? Que nossos cérebros se diminuam. Os professores começaram a ser degradados. Tem um pequeno dado: eu era namorado de uma professora. O salário dela foi instituído por João Goulart. 3000 cruzeiros e, olhe, o que significava isso: que as pessoas de capacidade estavam convidadas a serem professoras, porquê salário nenhum pagava aquilo, principalmente para mulheres, que eram a maioria. Significava que estavam privilegiando o pensamento, o desenvolvimento das crianças e o que foi que a ditadura fez? O contrário! Degradou os professores e veja como eles estão, até hoje, aí, servindo ao capitalismo nesta degradação do ensino. Isso é uma das coisas mais, terríveis! Por que falta educação? Porquê o governo não quer! O próprio governo de esquerda que está instaurado no Brasil, o governo de Lula, precisa que o nordeste seja miserável do jeito que é, prá poder lhe dar bolsa família, pois se o nordeste deixar de ser miserável, ele não vai ter aqueles votos todos. É uma maravilha para o governo Lula que o nordeste seja esta miséria que é. Eles estão dispostos a todas as providências prá que o nordeste não possa melhorar e se eternizarem no poder. É isso que está em jogo na hora que alguém mexe com a cultura da nação e foi isso que Caetano e Gil fizeram com consciência, sabendo que estavam fazendo. Claro, todo mundo vai ter o que falar mal do procedimento de um e de outro, mas tudo bem, pois, realmente, meu cumpadre, ali, na hora em que o cara pensou: vou fazer isso, não tinha uma santa alma que dissesse que estava do lado dele. O que pode representar bem isso? A famosa vaia do Tuca. A gente não pode ser cruel e dizer: “Aqueles filhos das putas que vaiaram Caetano!”, não é isso, não é esta a questão. Eu acho até que eles tinham a intuição de que aquilo era tão importante, que precisaria vaiar prá poder a notícia repercutir. Augusto de Campos, desde a hora em que Caetano, em 1965, defende na Revista Civilização Brasileira a retomada da linha evolutiva da música popular brasileira, à partir de João Gilberto, Augusto e os concretos disseram: “É esse o homem da gente! Este rapaz tá dizendo alguma coisa” . Você vê como estes concretos eram espertos e ativos os filhos das putas!

3. Já valorizavam e defendiam até mesmo Roberto Carlos, que era o grande vilão da época, não é?

O João Gilberto fala que, em 1969 ou 1970, quando tinha os famosos shows do teatro Paramount (A Bossa no Paramount), que eram celebrados como “a verdadeira música popular brasileira”, ele estava na porta, um dia na saída, e foi ver, como quem não quer nada. As pessoas nem se lembravam dele, fazia quase dez anos que ele não aparecia na televisão, ele entrou por um canto e alguém o perguntou se ele havia gostado, e ele disse: “Olha eu prefiro iê-iê-iê do que jazz retardado”, e é verdade. Quando Roberto fez seus primeiros discos de ie-ie-iê, aquele álbum da estrada de Santos (Roberto Carlos em ritmo de aventura) eram coisas que você, quando ouvia, se arrepiava. Quero que tudo mais vá pro inferno é tão bom, que Roberto Carlos agora proibiu. Não deixa tocar, não canta e não deixa ninguém cantar.

4. Em um texto seu intitulado Aniversário de São Paulo você conta um delicioso episódio em que narra a saia-justa de caminhar nas ruas da cidade com Gal Costa e ser fulminado por olhares reprovadores à calça comprida de Gal, traje adequado para mulheres de vida fácil. São Paulo era um tanto careta e preconceituosa, nesses idos de 1965. Vivendo aqui, até hoje, acha que essas coisas mudaram muito?

Gal e eu, a gente tinha um namoro meio atrapalhado. O dia que ela me chamava prá sair era uma festa, porque eu não tinha direito de chamá-la prá sair e ela disse: “Tônio vamos fazer umas compras na cidade?” E ela veio com uma calça de casemira, daquelas calças de filme de hollywood, dos anos 1940, e eu estou com Gal na rua e todo mundo bolindo com Gal, aí eu falei: "Pô, sou mesmo um homem de merda, não é? Já sou acanhado prá diabo, aí tô com a moça aqui e todo mundo bole com a moça?" Gal não era conhecida, não era nem Gal Costa, ainda, era Gracinha. Depois de muito sofrimento, uma senhora teve a caridade de chamar a gente no fundo de uma loja e falar: “Minha filha, moça direita não sai de calça comprida em São Paulo. Quem sai de calça comprida em São Paulo é prostituta!” Aí a gente compreendeu tudo, voltamos prá casa com o motorista de táxi dizendo cada nome. Aí eu disse: “Já entendi, já entendi: você deve achar que tá carregando uma puta e seu irmão, não é?” E Gal tão linda, que quase perguntei a ele: “E você ainda deve achar que eu sou rico, prá andar com uma dessas, não é?” Apesar de coisas como esta, a gente não enxergava o preconceito, porquê a gente estava inserido no meio da classe média, a gente não veio prá cá com uma mão na frente e outra atrás. Ganhávamos duzentos cruzeiros, por mês, prá fazer o Arena canta Bahia. Quando eu vim, que eles chamaram o grupo baiano todo prá fazer o espetáculo, eu já vim com a carteira do ministério do trabalho assinada. Me entregaram aquilo e eu pensei: “O que é isso: uma carteira de trabalho assinada pelo Teatro de Arena, como ator?” Ganhava duzentos cruzeiros por mês e comia no Redondo, que era o restaurante dos artistas, mas daí que você lidava fácil com as diferenças, pois na Bahia, até prá você tratar bem uma pessoa, você tem que tocar a pessoa, agora chegar um bicho como eu, com essa voz, com essa cara, chegar e pegar nas pessoas: “Ô neguinho...” O cabra dizia: “Sai daqui, tire esse carrapato de perto de mim” A gente tomava cada pontapé, querendo ser gentil.

5. A prisão e exílio de Caetano e Gil, e o consequente desmanche do grupo tropicalista, foi um período inicial de transição, em que cada um iria seguir seu rumo. Gil. Caetano, Gal e Bethânia tiveram carreiras de grande apelo popular, enquanto gente como você, Torquato Neto e Jards Macalé iriam experimentar um ostracismo vergonhoso. Esta ruptura, de alguma forma, também estabeleceu um rompimento da amizade que havia entre vocês? Ainda se relaciona com eles? Acha que, no campo artístico, ainda hoje, haveria convergência entre vocês?

Tem um incidente que explica bem isso: o dia em que Caetano falou bem de meu disco e que eu tive aquele desentendimento - que não quero nem tratar desse assunto, porquê é um assunto grosseiro, de uma hora que precisou disso -, naquele instante, eu falei que descobri, por infelicidade, por mortal infelicidade, que eu não pertencia mais ao grupo baiano. Quando teve essa coisa de cada um ir prá seu lado, prá mim foi doloroso, também, porque era perder amizades muito boas e eram amigos muito competentes, eram, vamos logo falar, gênios que, por acaso, eram amigos meus e perder estas amizades foi uma tristeza muito grande. Eles se separaram por decisão, decidiram que cada um devia ir prá seu lado, mesmo porquê, eles podiam seguir carreira, e eu tava decido a voltar prá Irará, prá onde eu iria de fato, se não fosse ter conhecido David Byrne, nesta casualidade do destino, anos mais tarde. Eu ia voltar prá Irará, prá tentar a vida por lá. Neste tempo já não existia mais a loja de meu pai, mas eu ia tentar um trabalho com meu sobrinho, que tem um posto de gasolina, a última coisa de negócios que a família tem, e eu ia pedir a ele prá ser o gerente dele, ser frentista. O que eu não queria era ficar aqui, sendo empregado do governo Montoro. Era muito nobre ir lá ajudar o governo a dialogar com seus artistas, mas eu não queria.

6. Quando o tropicalismo chega ao fim, sua música vai, cada vez mais, subvertendo estruturas da canção popular brasileira, seja em alegorias da bossa, flertes com a música de fossa, ou aquilo que Torquato Neto descrevia como “sambão quadrado”. Você acha que a ação coletiva limitou ou expandiu sua capacidade criativa?

Olha, eu vou dizer uma coisa: eu acho que, desde o começo, não tinhamos nenhuma afinidade. Eu estava na Bahia e um rapaz chamado Orlando Sena, jornalista, escalou que eu devia conhecer Gil e Caetano, e disse a mesma coisa a Gil e Caetano, que devíamos nos conhecer e Caetano trazia, naturalmente, Bethânia, irmã dele, que era uma cantora bem nova, mas cantando uma maravilha, e uma menina, colega nossa de dança, que apresentou Gal Costa a Caetano, que, naturalmente, foi uma coisa bem vinda a nosso convívio, uma maravilha, então, eles decidiram que eu iria ficar perto deles, eu não tomei nenhuma decisão. Quando nós nos juntamos e conhecemos as músicas uns dos outros, eles decidiram que eu ia ficar junto deles e fizemos juntos o primeiro show, o segundo, viemos juntos prá cá fazer o Tropicalismo e, na volta da europa, após o exílio, eles decidiram que cada um deveria ir prá seu lado. Na hora que eu entrei, não sabia que seria uma coisa tão grande, que estava me aproximando de gênios, que na verdade os são e, na hora da saída, eu já sabia disso, fiquei muito triste até porque era uma perda muito grande de amizade. Eu fazia um tipo de música em Irará, que é o seguinte, Eu ia falar do seu trabalho, da roupa que você está vestindo, da maneira que você se pinta, dos objetos que você usa, de forma que você se sinta, imediatamente, identificado, como um personagem dentro da música e incapaz de ver que eu não era cantor. Com se eu enganasse você. Minhas músicas eram prá enganar o ouvinte e impedir que ele descobrisse que eu não era cantor. Enfim, eu comecei a fazer música que, imediatamente, você começava a pensar e, quando eu falava: “Guilherme se requebra”, você já tava: “Isso, eu sei o que é isso!”. Você já era personagem da canção.

7. Você mesmo já citou que o hiato entre 1968 à 1973 foi seu período de vida e morte na tropicália. Seis anos mais tarde, em 1979, Celso Favaretto publicou o livro Tropicália Alegoria Alegria e sequer menciona seus álbuns na discografia do movimento, nem mesmo Liquidação Total, tido como um dos mais importantes da tropicália. Nestes idos de 1973 já desconfiava que estaria fadado a tal esquecimento?

No quinto aniversário do Tropicalismo, eu era tropicalista; era parte do grupo, da imprensa, da festa e de tudo. No décimo, como eu estava fora de circulação, comecei a ficar assim, lembrado, apenas. No décimo quinto, eu estava quase completamente fora e no vigésimo eu já tinha desaparecido, completamente. A RCA tem uma compilação de compactos do início de carreira do grupo todo (Eu vim da Bahia), e, já ali, você vê que eu faço algo completamente diferente, eles são bossanovistas. Então já estávamos separados, há muito tempo, mas ao contrário, eu fiz um pouco de esforço, a partir do momento que comecei a cantar com eles, nos shows na Bahia, no Teatro Vila Velha, em meu primeiro, segundo e terceiro discos, fiz um esforço muito grande, prá conseguir botar o que eu produzia, que não se chamava de música, no apelo da música popular. Música popular era “O samba da minha terra deixa a gente mole, quando se dança todo mundo bole...” e depois “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é” O A e B. Uma coisa e outra, porquê as coisas diferentes se unem, então o povo sempre teve a sabedoria de fazer o A e o B completamente diferentes uns dos outros, porque diferentes se unem, isso era o traço da escola de Viena, que me ensinariam tempos depois na UFB. Lembro que estava com Torquato Neto, no dia em que Caetano me trouxe aqui, no mês de setembro de 1967, porque em 1965 eu ainda voltei à Bahia, pois o pessoal da bolsa de estudos de música da universidade, me falou: “Ei, não vai voltar?” E aí fiz o Arena Canta Bahia e, à partir daquele resto de 1965, até 1966, 1967. eu já era quase dono da escola: dava aula de harmonia, e aí teve um daqueles tremores de terra, que em universidade tem muito, uma coisa contra meu diretor, que era Ernst Widmer, a escola toda sacolejou contra ele, e eu falei: “Professor, acho que o senhor vai precisar destes empregos meus”. Eu era jornalista da escola, pois tinha sido jornalista, em 1959, no Jornal da Bahia e a escola não percebia que ela seria muito matéria prá jornais, se fosse feito já da maneira que os jornais trabalhavam, se fosse escrito como os jornais trabalhavam e um alemão daqueles, que gostava de tirar fotografia, ia lá, tirava as fotos e eu montava a matéria, daí que a divulgação da escola quadruplicou e eu passei a ser o sucesso da escola como jornalista, passei a ganhar duzentos cruzeiros por mês. Era uma fortuna. Eu coordenava também os concertos da Orquestra de Cordas e do Conjunto de Metais da escola secundária, e também cobrava mais duzentos cruzeiros. Ganhava quatrocentos cruzeiros na escola. Puta que pariu! Acho que nem o governador da Bahia ganhava quatrocentos cruzeiros naquele tempo. Aí, quando teve essa resolução de abandonar, eu fui no jornal da Bahia, por acaso, entregar minha última matéria, e quando subi me disseram: “Caetano está aí, no terceiro andar” Isso era setembro de 1967, e eu falei “O Caetano, que saudades!” Aí, nós éramos, realmente, companheiros e amigos. “Que saudades!” e ele: “Poxa, cadê você?” E eu, naquele quebra pau na Bahia, e ele me disse aquela frase: “Eu já te disse: aqui na Bahia você só vai se aborrecer. Em São Paulo, você pode se aborrecer, também, mas pode ser que aconteça alguma coisa” Eu, como tinha dinheiro, peguei o avião e vim. Neste mesmo dia de minha chegada, ele me apresentou o disco dos Beatles, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, traduzindo música por música, pois ele sabia que eu não entendia porra nenhuma, qual era o significado daquilo tudo. Na noite do mesmo dia, ele me levou prá ver o Rei da Vela. Tratamento de choque. Eu fiquei convencido de que deveria vir mesmo e voltei à Bahia prá acabar o ano e prá cumprir as aulas que os alunos tinham pago e eu não tinha dado. As pessoas me diziam: “Como é que você pode estar envolvido com eles? Eles são artistas, você é um troglodita!” Aquele tempo foi dos melhores em minha vida.

8. No programa Roda Viva de 1993, você relembra que chegou a vender um imóvel na praia para investir nos intrumentos que inventava. Se definiu na mesma entrevista como incapaz de estrategiar procedimentos, logo depois, assume que desceu voluntariamante a rampa para o fracasso. Hoje, como vê estas escolhas? A realização artística amenizou as privações existenciais deste período difícil?

Estes instrumentos comecei a fazê-los em 1978, quando produzi Correio da Estação do Brás e eu já vivia tentando fazer algumas coisas. Quando você não é tocado no Brasil, tem uma coisa de dizer que você é vítima da cultura de massas, como eu não tenho vocação prá vítima, como eu não era tocado, eu fui trabalhar em casa. Eu não era chamado prá trabalhar na rua, não era chamado prá entrevista, não era chamado prá porra nenhuma, eu ia prá casa trabalhar. Como eu nunca botei a queixa como meu lema, o que me fez trabalhar durante meu tempo de ostracismo, foi que a queixa não era meu lema. Eu tive sempre muito doente, meu estômago era um orgão de choque naquele tempo, e só fiquei bom quando comecei a fazer Tai-Chi-Chuan. Uma coisa milagrosa. Ia lá tomar massagem e tal, uma hora de meia dúzia de movimentos, fantásticos prá sua cabeça e seu corpo, mas confesso que tinha vergonha de ir prá aula de Tai-Chi-Chuan. Sempre tendo vergonha.

9. Foi neste mesmo momento que você aderiu à macrobiótica, também?

Pois bem, o oriente me salvou aqui. Em 1985 eu estava morto. Enganava Neusa. Levantava prá enganar ela, prá dizer que tava vivo. Eu tava morto, não tinha energia nenhuma, não tinha nada, aí Neusa um dia falou assim: “Por quê não vamos na macrobiótica?” Prá quem tá morto, aqui ou na macrobiótica, tanto faz e eu falei: “Vamos, sim”. Chegando lá, o doutor me receitou uma semana de arroz e como eu não podia comer nada antes, pois ficava mal do estômago, o arroz, feito bem feito como a Neusa sabia e sabe fazer, com aquele gergelim e aquela salsinha, dentro de uma porção de arroz, tinha uma colherinha de salsinha e isso era minha vitamina C. Depois de uns quatro dias, meu intestino voltou a funcionar como não funcionava há muitos anos. Eu não sabia que meu problema era aquele. Eu já tava todo desgraçado, a mão não podia nem pegar em livro porque já estava toda despelando, excesso de ácido úrico. Tudo problema emocional e, comendo errado, vai piorando, daí que quando comecei a macrobiótica e os dez dias de arroz eu já era outra pessoa. Inclusive teve um negócio engraçado. Eu pude ter a experiência do que é uma droga pesada. Porque arroz depois do sexto dia, rapaz! Mastigava cem vezes! Incrível, você tinha de deixar de trabalhar, prá você sentar e começar a mastigar, cinquenta, sessenta, setenta, oitenta..., a pessoa normal mastigava sessenta, eu mastigava oitenta por que era mais doente. Você pode imaginar, se seu cérebro era de um jeito e você passou quarenta anos absorvendo toxicidades maiores, produtos e produtos que começam a circular no sangue e modificam o cérebro, aí você começa a voltar à mesma toxicidade que você tinha, quando tinha seis meses, rapaz, faz novamente conexões neurais, que você não sabia mais, que o cérebro não sabia mais e é aí que você sabe o que é uma droga pesada.

10. Você acha que, de alguma forma, esta geração internet, voraz por música poderia resgatá-lo, mesmo que isso fosse acontecer dez anos depois da descoberta de David Byrne? Acha que sentiria o mesmo estímulo de retomar sua carreira?

Quando fiz os primeiros instrumentos, em 1978, percebi que, realmente, estava muito avançado para aquela época, tanto que não consegui colocar os intrumentos na rua. Um pouco por causa de problema de cabeça e aí é muito detalhado prá saber por quê eu preferi me sabotar daquele jeito, naquela ocasião. Não gosto de fazer queixa e culpo a mim mesmo. Fiz estes instrumentos, em 1978 e, em 1988, o Instituto Goethe chamou toda imprensa brasileira para ir ver umas bandas americanas que estavam produzindo músicas com instrumentos eletrodomésticos, e era a mesma manchete na Folha, no Estado de São Paulo, defendendo aquilo como algo inédito. Daí que um rapaz que trabalhava na Faculdade Getúlio Vargas, quando estiva mostrando estes instrumentos, em 1978, era um dos redatores da Veja na ocasião e escreveu, de cunho próprio, pois eu não era nem amigo dele e nem o conhecia: “Bem, o Instituto Goethe chamou a gente prá ver umas bandas que trabalham com instrumentos de trabalho ou instrumentos de cozinha e tal. Olha: não tem novidade nenhuma nisso, principalmente, fazendo o que fazia o Tom Zé, em 1978, que, inclusive, já era muito melhor.” Então é o caso de pensar que se eu tivesse tido, também, uma cabeça boa prá deixar aquilo ir pro mundo naquela hora, se eu não tivesse criado problemas com os caras que estavam ali, me ajudando, não tivesse feito coisas erradas, tendo problemas de cabeça, o Brasil ia ter essa glória de ter fundado toda esta música que, depois, passou a circular. Já pensou que coisa importante? Eu não choro por isso, não, pois eu sei que foi tudo por culpa minha. João Araújo, por exemplo, queria me ajudar, era diretor da Som Livre e queria me ajudar, pessoalmente. Tinha sido meu produtor no primeiro e no segundo disco e eu sabendo que ele tinha uma possibilidade de diálogo, fui a ele mostrar os instrumentos, ele mostrou grande interesse e quis lançar pela Som Livre, quis botar no festival da Esso, que era o primeiro festival que ia ter, aí eu não sabia que a gravadora era quem escolhia um artista para botar no festival e eu ia ser “o artista da Som Livre”, meti as mãos pelas pernas, saltei fora da jogada e depois fui convidado para um outro festival do Canal 4 e também achei que não devia participar, que era bobagem. Então, ninguém tem culpa de nada, você mesmo se mata, você mesmo é seu próprio algoz.

11. No show em que você revisitou seu álbum de estréia Liquidação Total, na Virada Cultural, aconteceu o episódio da menina que, furiosa, com a (des)organização caótica do evento, esbravejou, xingou-o e saiu de dedos médios em riste, logo na abertura do show. Pouco foi falado disso na imprensa nos dias que sucederam o episódio. Por alguns segundos você e a banda mergulharam em um silêncio constrangedor. Queria saber qual foi sua leitura do episódio.

Que bom que você lembrou disso, o normal seria eu dizer: “Agora não posso falar disso, que o público está aqui, estamos no horário. Está atrasado e temos que começar!” Os shows anteriores atrasaram e o nosso também, por consequência. Estava preocupado com isso e, ao mesmo tempo, tendo que administrar a situação de abandonar uma pessoa, parecendo que eu estava desprezando a queixa dela. Como é que eu iria parar prá tomar providências com o que estava acontecendo lá fora? Pois foi por isso que eu fiquei parado um pouco, pensando e é engraçado você lembrar disso, pois a gente teve mesmo um momento parado. A moça, depois, veio me contar em detalhes, que a polícia estava maltratando as pessoas, que não liberavam acesso a pessoas que estavam com convites. Lamentável.

12. Dois anos antes houve o quebra-quebra na praça da Sé com os Racionais Mc’s e nos anos seguintes segregaram o rap para o parque Dom Pedro.

É por isso que eu falo que é importante estas festas irem para as periferias, não ficar só aqui no centro. Eu fiz minha primeira Virada Cultural no Anhangabaú e na segunda me mandaram para um CEU na zona leste.

13. Suponho que você lidou com um público diferente. Como foi a aceitação?

Veja bem, você tem que fazer um certo cálculo, pois em qualquer lugar que for tocar sempre será diferente. Você vai ao Teatro Municipal e sabe que não vai encontrar em um show destes aquele mesmo ambiente, é diferente, mas lá, é claro, você precisa tomar o curso das coisas com a platéia, recebendo um feedback da capacidade de interesse que a coisa provoca e fiz até um número improvisado, que a gente faz raramente, e foi uma felicidade, como se as portas se abrissem e eles estivessem livres da televisão, da escravatura da televisão, por uma única noite. Não tem um patrão que quer desenvolver nas pessoas a violência, não tem esse patrão no comando. Tem a alegria.

14. Horas antes, vi um Teatro Municipal assistir extasiado Arrigo Barnabé executar Clara Crocodilo em seus arranjos originais. Convenhamos que não se trata de música gastronômica, de fácil digestão. Você que já teorizou sobre o pagode e o funk, tidos como sinônimos de uma certa decadência de nossa música, o que pensa sobre isso?

Barnabé, há tempos, é um orgulho de São Paulo, mas quando uma coisa acontece aqui e agora é muito perigoso a gente querer julgar. O povo tem de ter toda liberdade do mundo prá fazer o que pensa e o que gosta, qualquer coisa que ele queira ou que ele possa. Agora, há pouco, foi fechada uma orquestra da Petrobrás, no morro do Vidigal, onde as crianças estavam apaixonadas por música erudita. A gente pode pensar isso, que se tiver violência e crime em todos os filmes que passam na televisão, as manifestações mais populares também vão estar encharcadas dessa coisa da violência. No Rio, prá moça entrar em alguns bailes funk precisa assinar documento dizendo que ela permite que façam com ela qualquer coisa que queiram, que dê na telha., do ponto de vista sexual. Isso pode ser um tipo de violência contra a mulher, mas também existe o preconceito, que é dizer que mulher não tem direito a sexo. Veja as coisas como são? Facas de dois gumes, quer dizer, o que é que está implantado na sociedade? É o que tá no filme do Buñuel. O padre vira para a burguesa, a mulher nobre, e diz: “O quê? Seu marido está com a senhora duas vezes por mês? Isso é demais. Uma vez por mês já é o bastante, e nunca por prazer, só pra procriar!” Então, quer dizer, o que é que se fala diante de uma situação como essa? O Buñuel tá dando só o testemunho, e o que acontece com as mulheres do funk, como a Tati Quebra-Barraco? Ele faz um reação contra esta proibição e tem horas que essa reação está na medida exata, é certa e estou de total acordo.





18.11.09

Gil, cidadão do mundo (perguntas não publicadas)

Em julho, entrevistei Gilberto Gil para fazer um balanço de sua carreira, à partir do exílio em Londres. Três perguntas ficaram de fora. Conteúdo na íntegra postado abaixo. (Foto: Luiza Sigulem)

Em defesa dos tropicalistas, acusados pelo dramaturgo Chico de Assis de reacionários e indiferentes a seriedade do momento que viviam, Décio Pignatari replicou - em debate ao Jornal Folha da Tarde -, que: “...a guerrilha foi criada com audácia e música também se cria com audácia” Nesse ambiente livre de hoje, onde se cria, registra e distribui música do próprio computador de casa, você acredita que algo realmente audacioso esteja por surgir na esfera de nossa música popular? Arrisca indicar possíveis caminhos e protótipos a quem busca romper com este aparente marasmo vigente?


Gilberto Gil: Acho que sim, porquê, mesmo que essas disponibilidades atuais de acesso a técnicas instrumentais, possam levar-nos a um fastio, uma sensação de vazio, de empobrecimento, de mesmice, é exatamente por isso que essa sensação se instala de algum momento de forma muito forte e ampla e atingindo muita gente. A revolta contra isso vai surgir. É sempre assim. Alguém vai desafinar o coro, de novo, fazer alguma coisa. O que, talvez, torne mais dificil a percepção disso ou desse momento - quando esse momento chega, se já chegou, quem encarna esse momento - a dificuldade de tudo isso é que, diferentemente das tencologias anteriores, essas tecnologias de agora permitem que essas coisas aconteçam, concomitantemente, de forma muito pulverizada. A própria reação a este imperativo tecnológico de hoje já é absorvida por este imperativo tecnológico. A capacidade de revolta, de rebelião, de contestação, já é parte do próprio processo. É como os comentaristas filosóficos contemporânos dizem: não há o lado de fora. Não há nada que você possa, de repente, dizer: isso aqui está de fora, isto aqui se coloca fora, porquê está tudo do lado de dentro. Vamos ver em que momento a gente vai perceber que alguma coisa está do lado de fora, de novo. Quando é que isso vai acontecer. É uma expectativa. Vai ser surpreendente, vai ser interessante, mas é difícil vislumbrar, hoje, pois tudo que se faz, todo desvio de norma, toda esquisitice, tudo, hoje, tem um espaço nessa interioridade abrangente da terra que nós vivemos.

No show que acompanhamos, você se referiu a seu último álbum Banda Larga Cordel como um pós-álbum. Poderia esclarecer este conceito?

Gilberto Gil: Já na época de lançamento de Banda Larga Cordel, em uma reportagem ao Correio da Bahia, falo claramente que a intenção ali era procurar novos caminhos, exatamente não escolhendo um elemento conceitual que costurasse as canções todas, não tendo, necessariamente, a necessidade de escolher uma faixa para abrir ou prá fechar o disco, uma canção de trabalho. Toda esta aleatoriedade acabou marcando a vida do disco eu acho que tudo isso já é uma admissão muito clara de que o pós-álbum está aí, muito claramente. Pessoas querendo comprar canções separadamente, uma, duas, três, quatro, cinco, seis. Qual é o significado que vai ter, daqui a pouco tempo, o fato de você ter doze músicas em um álbum? Qual vai ser o significado do álbum? A não ser em casos de genialidade, como é o do Caetano, onde o empenho, mais o talento podem dar conta de manter uma estrutura fechada em um meio aberto a questão está aí como um desafio para nós, artistas.

Falamos, há pouco, de Jorge Benjor e tem uma canção de Orlandivo que se chama Um abraço no Bengil, que homenageia você e ele . Quando ouvi seu filho Bem ser apresentado como Bem Gil, no show que encerrou a turnê Banda Larga Cordel, em Osasco, não sabia a grafia correta do nome, e me veio, de imediato, a lembrança desta canção. Fiquei curioso em saber se você pensou na música, quando deu nome ao menino. Talvez uma espécie de alusão a homenagem que, ao mesmo tempo, não deixaria de ser uma homenagem a Jorge?

Gilberto Gil: Não, não é. Tanto que eu acho que não lembro desta música. Me lembro muito bem do Orlandivo “... sentado na calçada de canudo e canequinha” (cantarola em alusão à música Bolinha de Sabão, de Orlandivo e Adilson Azevedo). Gostava muito do Orlandivo. Ele preprava esta fusão entre o funk, a bossa e o samba que o Tim Maia veio depois manifestar de forma mais explícita abrindo caminho prá essa turma toda: Cláudio Zoli, Carlos Dafé, Bebeto, O Orlandivo já era precursor de tudo isso, mas o nome do Bem não tem referência a isso, não. Vou até recuperar, vou procurar esta canção.

6.11.09

Entrevista Wilson das Neves - Íntegra

Íntegra da entrevista realizada em janeiro de 2009 com Wilson das Neves, base do texto O som quente e o dom de Wilson, publicado em Março na revista Brasileiros (foto: Luiza Sigulem)

As biografias que pesquisei são unânimes em afirmar que você iniciou no instrumento aos 14 anos. A partir daí, você teve estudos teóricos ou foi um aprendizado autodidata?
Não, eu não fui estudar aos 14 anos. Nessa idade eu ia muito ao candomblé. Aliás, desde muito garoto eu era fascinado pelo tambor de candomblé, pois minha família é candomblecista. Somos todos negros, aliás, afrodescentes, pois, hoje em dia, não pode chamar de crioulo, se não, ofende. Comecei a estudar o instrumento mesmo com 18 anos, quando estava no exército, em 1954.

Antes disso, como era o menino Wilson? Já tinha interesse por música, influências familiares?
Sempre gostei muito de música, mesmo porque eu tinha uma tia que quase toda semana, por qualquer motivo, dava festas em casa. Aniversário do cachorro e ela dava festa. Ela gostava de ver a casa sempre cheia de gente e a música era um elemento que não podia faltar. Havia muitos álbuns de jazz bands que tocavam nas festas dela e eu ficava, ali, prestando atenção a tudo. Rolava também, música regional, grandes orquestras. Um ambiente que muito me estimulava e foi lá que eu conheci um baterista que começou a tocar na casa dela, quando as festas passaram a ter música ao vivo, chamado Edgard Nunes Rocca, conhecido por todos como Bituca.

Bituca era professor profissional?
Não. Eu ia aos bailes, acompanhando o Bituca, como uma espécie de roadie. Estava com 18 anos, servindo o exército, e decidi ajudá-lo nos bailes porque não tinha dinheiro para entrar. Enquanto ele tocava, eu ficava dançando por ali, e tal, depois, ao final do baile, eu o ajudava a levar o instrumento de volta e assim foi, até que um dia ele perguntou se eu não gostava de bateria, disse que sim e ele me aconselhou: "Mas, então, por que você não estuda o instrumento?!". Eu não tinha referência alguma, mas ele me levou a uma escola e comecei a estudar. Depois disso, ia ao baile com ele e já não dançava mais, ficava ali, do lado, de olhos e ouvidos atentos, aprendendo. Depois de um ano e pouco, o Bituca saiu da orquestra. Fiquei no lugar dele e estou até hoje tocando por aí.

Neste período, ainda havia muita resistência à invasão da bateria no samba?
Não, nesta época a bateria já era bem aceita e difundida. A resistência tinha ficado pra trás. Acontece que a bateria não é um instrumento que o americano criou para tocar samba, ela foi criada para tocar a música deles. Já na década de 1940, a bateria chegou fortemente ao Brasil e começamos a fazer nossa tradição. Nesse período, embora anônimos, já havia grandes bateristas. Músicos que liam e escreviam música.

Algum grande baterista deste período que você destacaria e não é lembrado?
Não, mesmo porque nossa memória é curta. Não se creditava, não se filmava, não se registrava nada. Músico profissional era anônimo mesmo e, por incrível que pareça, na grande indústria, quem começou a colocar nomes dos músicos nos créditos dos discos foi a Elis Regina. Quase nos anos 1970, quando toquei com ela. Antes disso, ninguém dava a menor atenção, saíam nos créditos o compositor e só, nem o nome do maestro que arranjou o disco era respeitado.

Você fez parte de uma geração de grandes bateristas, como Milton Banana, Edison Machado, Airto Moreira e o Dom Um Romão. Todos com um estilo personalíssimo, mas ligados à cadência da bossa. Particularmente, a quê você acha que se deve a famosa "batida diferente" da bossa nova? Foi mero casamento do samba com o jazz?
Para mim, bossa é samba e samba é um ritmo muito complexo. Se você observar bem, ninguém toca igual a ninguém, mas tudo deriva do samba e tanto faz se é bossa nova. Dêem o nome que quiserem dar: é uma variação do samba e cada um toca do seu jeito. Agora, lógico, que na bateria tocada por aqui, sempre houve muita influência americana. O instrumento não foi criado para tocar samba e os métodos são todos americanos. Para fazermos um método de samba para bateria no Brasil teremos que enfrentar problemas seríssimos, como investir em partituras.

Neste seu início de carreira, ainda nos anos 1950, você teve um envolvimento intenso com a música erudita. Tocou na orquestra Ubirajara Silva e chegou a integrar a filarmônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Como foi essa ligação? Havia mesmo interesse em prosseguir na música erudita?
Não, o que me movia mesmo era a curiosidade das descobertas e o fascínio do aprendizado. Minha intenção não era dizer "vou tocar no Teatro Municipal". Queria mesmo era vivenciar aquele universo da música erudita, mas, daí que eu continuava indo ao candomblé, gostava de música popular e, se você for ver bem, em uma sinfônica, nas horas vagas, quase todos os instrumentistas, metais, cordas, sopro, trabalham com música popular. Minha intenção era aprender com propriedade e acho que aprendi. Toquei em importantes espetáculos, como Mefistófoles e Aida, era como estar no céu, no olimpo, mas, pouco tempo depois, abandonei esse ambiente da música erudita, pois não me pagavam direito e eu vivia de música.

O período que sucede a explosão da bossa revelou grandes instrumentistas e percebe-se nos créditos de grandes álbuns do período que boa parte desses músicos trafegavam pelas mesmas gravações. Como era esse ambiente? Havia alguma espécie de competição ou era mesmo forte a ligação entre essa turma?
Não, ao menos eu acredito que não havia competição. As gravadoras chamavam os músicos que podiam resolver o problema. Não se chamava por simpatia, pelo nome ou pela cor. Nada disso. Era essencialmente a questão do músico que resolve, entende? Os arranjadores tinham uma relação de músicos que podiam contar e que se encontravam nos estúdios com frequência. Em geral, eles se baseavam pelo seguinte critério: "Chama fulano! Ah, fulano não pode?! Então chama sicrano!". Chamavam quem resolvia e ponto final!

Mas nos combos de samba-jazz aí, sim, a relação era de verdadeira afinidade, não é?
Sim. Com a afinidade, começaram a surgir os trios e os quartetos no ambiente da bossa. Por um breve período, valorizou-se a música instrumental, que não era prestigiada por aqui. Até hoje no Brasil é muito complicado. As pessoas não ouvem música instrumental, não tem conhecimento. Tem uma minoria que gosta, mas, enfim, daí, vieram os conjuntos, as orquestras de baile, com crooner e tudo.

Ao longo destes cinquenta anos de carreira, você teve a honra de participar de uma infinidade de álbuns que são considerados obras-primas da música popular brasileira como o Coisas, do maestro Moacir Santos. A despeito destes álbuns unânimes, houve algum que te surpreendeu, com um resultado final maior do que a expectativa?
Olha, eu gravei com mais de seiscentos artistas, gosto de tudo que fiz e faria tudo de novo. Quando eu sento no meu instrumento, eu não sento prá brincar, não. Sento prá fazer direito ou pelo menos tento. Lógico que tem coisas especiais. Imagine você como eu fiquei, quando o meu professor de harmonia, Moacir Santos, me convidou prá gravar com ele. Fiquei, como diria o Chico Anísio: "Com o peito em festa e o coração à gargalhar". Fiquei feliz da vida por ele ter me chamado prá gravar com ele.

À propósito deste período, existe uma polêmica de que o Neco, seu parceiro no conjunto Os Ipanemas, seria o verdadeiro autor do álbum Samba Nova Concepção, creditado ao Eumir Deodato à frente dos Catedráticos. Você, que esteve presente, conduzindo a bateria, o que diz à respeito?
Não, o álbum não é do Neco, não. O Eumir Deodato é um grande arranjador. Chegou moço, escrevendo bem, escrevendo bonito. O Neco era integrante dos Catedráticos, tocava violão no disco, mas isto é intriga da oposição. O Lyrio Panicalli, o grande maestro, queria ir lá ver as partituras do Eumir, prá analisar, prá ver como é que era, pois já era uma coisa diferente. Muito precoce. Daí, talvez por isso, que já diziam que não era dele. Mentira. Era dele, sim. Gravei e toquei com ele.

À propósito do Deodato, Sérgio Mendes, Dom Um, Raul de Souza, Marcos Valle, Airto e Flora. Um sem número de músicos brasileiros fizeram carreira e permaneceram no exeterior. Como foram suas passagens por terras estrangeiras? Permanecer no Brasil foi uma escolha pessoal?
Eu nunca tive a intenção de morar fora daqui, não. Opção minha. Acho que minha terra é aqui. É aqui que eu vou fazer tudo que eu tenho que fazer. Vou lá, toco, gravo; já fui várias vezes, já acompanhei vários artistas, mas meu lugar é aqui. Agora, trabalhando com o Chico, há vinte e cinco anos, rodo o mundo. Aliás, essa semana ele me ligou prá me cumprimentar, porquê, sou bisavô. Tenho um bisneto, Joãozinho, filho da Graça. Tá lá me dando prazer e tenho que agradecer a minha neta, por me fazer bisavô vivo, porque bisavô morto não adianta nada!

Depois de sair do ambiente da bossa, quando você inicia uma carreira solo, partindo do Juventude 2000 (1968), e nos outros dois álbuns que viriam, à seguir, à despeito de ainda haver vestígios de brasilidade, sua música passa por uma guinada radical, pois vai somando elementos mais modernos, universais e se fundindo com o funk, com o soul, o jazz latino. Como foi essa mudança? Houve intervenção de produtor, direção artística, ou foi tudo planejado? Que som fazia sua cabeça ná época?
Olha, papo meu e do Geraldo Vespar que fez os arranjos do primeiro disco, Juventude 2000. Papo nosso: "Ah, vamos fazer uma coisa assim mais ousada, com uma intenção de atingir a garotada". O nome do disco já sugere isso. Agora, olha eu gosto de tudo, gosto de música. Não gosto de barulho, nem negócio de: "Saiu um som!" Qualquer instrumento bem tocado me faz bem. Tem gente que não gosta de Astor Piazzolla. Então, não gosta de nada. Eu gosto de tango, como qualquer outro ritmo. Música é universal. Música não fala, toca.

À partir dos anos 1980, você volta a assumir o papel do homem de estúdio, e volta a trabalhar com uma infinidade de músicos brasileiros. O período foi marcado pela explosão do rock no Brasil e uma aparente estagnação da mpb. Você compartilhava desta sensação? A escolha de voltar a tocar profissionalmente tem a ver com isso?
Olha, quando você gosta do que faz, não vê problema em nada. Como diz o Nelson Sargento: “O samba agoniza, mas não morre!” e, então, tá vivo aí. Ele cai um bocadinho e se levanta, quando é bom samba, porquê, no meio de tanta coisa que se grava ou se gravou na bossa nova, no meio de tanta coisa de ontem e de hoje, tem muita sandice. Tinha bossa sandice, como também tem olodum sandice, pagode sandice, axé sandice. Tem os bons e os sofríveis. Não vou eu dizer que são ruim, porquê se faz sucesso prá um milhão de pessoas, quem sou eu prá dizer que é ruim, não é? Agora tem muita coisa que é sandice e isso aí precisa falar mal mesmo.

Desde 1997, você resolveu levar à público os dotes de cantor e compositor, lançando dois álbuns de canções, o que é irônico, se considerarmos que, praticamente no mesmo período, sua carreira começa a ser redescoberta por uma juventude que fica fascinada pelo seu envolvimento com a música instrumental. Como foi tomar esta decisão? Cantar e compor era segredo antigo?
Eu já tinha gravado sete, oito álbuns instrumentais. Me convidaram prá gravar mais um e eu falei: não quero! Era um projeto, Performance, que tinha na CID. O Esdras, produtor, me convidou: "Vamos fazer um disco instrumental?" Ah, fiz tantos, você tem que ficar convidando colega prá te ajudar e sabe que instrumental não dá dinheiro, é na faixa e eu falei: "Se é prá gravar assim, eu quero gravar minhas músicas". Eu tinha já muitas músicas, mas não tinha a ousadia de gravar, nem de mostrar prá ninguém.

E você vem compondo, desde quando?
Desde mil novecentos e setenta e pouco, que venho compondo minhas músicas. Compondo e guardando. Daí, que resolvi gravá-las, em 1997, mas minha idéia não era cantar. Era montar o meu conjunto e ia trazer um intérprete, cantor, cantoras. Então o Esdras me pediu: "Traz tuas músicas pra gente ouvir". Ele ouviu e falou: "Muito bom, vamos gravar!" Eu disse: "Então, vamos, mas quem é que vai cantar?" No que ele respondeu: "Do jeito que você está cantando aí, canta você mesmo". Daí, que virei cantor. Não foi programado, nem tive a intenção de ser cantor. Aliás, na minha vida não tem nada programado. A única coisa que tem progamado na minha vida é: quero ser feliz!

3.11.09

Irmão cara de pau


Reincidente, guitarrista Sérgio Dias reassume o espólio dos Mutantes e lança Haih... or amortecedor. Novo álbum de inéditas soma capítulo infeliz à gloriosa carreira do grupo criado pelos irmãos Baptista.


Ringo Starr convence Paul McCartney a reunir os Beatles e lançarão álbum de inéditas dos fab four em 2010. Kris Novoselic e David Grohl aceitam convite de Frances Bean Cobain, filha de Kurt, e lançam Nevermind Daddy, novo álbum do Nirvana. Absurdos? Oxalá estejamos certos, pois dá medo acreditar que, algum dia, sandices como estas possam ocorrer. Voltemos a 2008, ano de balanço da celebrada “reunião” dos Mutantes. Ao fim da turnê internacional, iniciada em 2007, a despeito do abandono de seu mais célebre tripulante - o cantor, compositor e multi-instrumentista Arnaldo Baptista -, o irmão Sérgio Dias, em momento lóki, anunciou que pretendia continuar conduzindo a nave louca dos Mutantes e preparava material inédito, a ser lançado em 2009. A profecia se fez cumprir e Haih... Or Amortecedor chegou as lojas americanas e europeias no início de setembro. O mercado interno, em uma rara manifestação de bom senso, não deu a menor bola para a atitude tresloucada. Simplesmente, não vai lançar o álbum em terra brasilis. Quem quiser pagar para ter a obra física, vai ter de dispensar alguns dólares ou euros.

Sandice feita, resta agora analisar o resultado. No melhor estilo “assim é se lhe parece” Haih Or Amortecedor sugere roteiro calculado. Os hinos que abrem e fecham o álbum aludem ao velho expediente seargent peppers de prólogo e epílogo, denotando estarmos diante de mais uma obra conceitual. Mas a cada decibel emanado nos falantes, temos a desagradável sensação de deja-vú e paródia. Ecos assombrados de uma história que capitulou com a história. Zélia Duncan, “cereja” do bolo, para a maioria dos fãs antigos que criticaram a retomada em 2007, saltou da canoa e coube a uma espécie de finalista do programa Ídolos assumir a vaga - veementemente, rejeitada por Rita Lee. O grande baterista Dinho Lemos, integrante oficial, à partir do segundo álbum Mutantes (1969), topou a parada. Acrescente-se, às lacunas, mais alguns músicos profissionais, um figurino negro, que dialoga com o corvo estampado na capa do álbum, e temos elenco e imagem pública deste: vale a pena ouvir de novo (será!?), Quanto aos novos temas apresentados, na ausência de compositor e letrista da estatura de Arnaldo, a little help from the friends: o produtivo Tom Zé assina seis letras e Jorge Ben, que à quatro décadas, deu Minha Menina para Serginho injetar decibéis selvagens de fuzz no samba-rock, repetiu a dose de generosidade e tirou do baú a canção O Careca. Pronto: sete das onze canções ganharam grife insuspeita e o que poderia sugerir uma ótima saída para a aparente maior deficiência deste "Mutantes safra 2009" revelou-se apenas mais um elemento dos propósitos dúbios desta retomada.

Defensores de uma nostalgia nociva irão bradar: "Mas os Doors, o Led Zeppelin, The Who, Animals, Kinks, e tantos outros, já fizeram o mesmo. Qual o problema!?" E é exatamente por esse grande histórico de fiascos que a empreitada parece ainda mais descabida e ambiciosa. Não se trata de canonizar Os Mutantes e tombá-los como patrimônio imaterial. Sérgio, Dinho, e os músicos que os acompanham, poderiam ter se contentado em cair na estrada e explorar o incrível repertório acumulado. Pretender dar continuidade a algo que, evidentemente, já teve seu fim assistido, há mais de três décadas, e deixou um legado irretocável, que o mundo todo vem aprendendo a endossar, não é lá "qualquer bobagem", com o perdão da paráfrase, meus amigos. Estejamos certos.

Serginho cresceu nas ruas de uma Pompéia bem informada e jovem, celeiro de bandas de garagem da zona oeste paulista. Criou um estilo pessoal, mas deve ter estudado técnicas e trejeitos de todos seus heróis da guitarra. George Harrison, Jeff Beck, Eric Clapton, Jimi Hendrix, Pete Townshend e Roger McGuinn, certamente, entre eles. Há um pouco de cada um deles em seus acordes, riffs e solos, mas não foi esse gosto apurado que o tornou um dos mais criativos músicos de sua geração. Some-se aí horizontes muito mais amplos. A música nova do maestro Rogério Duprat, a ousadia em estúdio de Manoel Barenbein, os experimentos do irmão Claudio César - que "turbinava” guitarras, pedais e amplificadores -, a companhia de gente articulada em questões direcionais da música brasileira como Caetanto Veloso e Gilberto Gil. A guitarra de Sérgio era feita de seis cordas, mas também de ótimas referências e companhias. Gil, questiona em Pega Voga Cabeludo, de seu álbum de 1968, onde toca e canta acompanhado dos Mutantes: "Serginho, cabeludo danado! Quem foi que lhe disse que você toca guitarra bem, rapaz?" Gil ironiza, mas Sérgio foi muito mais que um grande guitarrista. Como Lanny Gordin e Heraldo do Monte, foi um ícone de seu instrumento e de seu tempo. Justamente por este motivo, teria total autonomia para seguir adiante sem ancorar-se nos Mutantes. Mesmo que fosse em seus álbuns instrumentais, onde poderia lidar com seus melhores predicados e até agradar um séquito mais dócil de fãs, mais afeito à técnica que a estética. À propósito, com este novo álbum, não há dúvidas que passará a ser visto com um pouco mais de desconfiança por boa parte dos fãs da banda de rock mais instigante e criativa que este País já ousou ter.

Pocket Beat*


Clássicos da literatura beat voltam ao mercado em coleção de bolso


Amantes da literatura beat tem, além do preço acessível, mais quatro bons motivos para celebrar a coleção Pocket, da L&PM. O segundo deles é a reedição de um clássico: lançado em 1956, Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg rendeu, no ano seguinte, à seu editor, o poeta Lawerence Ferlinghetti, um processo criminal por pornografia e a tentativa de censura por obscenidade. Livre das suspeições jurídicas, o livro vendeu milhões de exemplares e projetou Ginsberg, ao lado de Jack Kerouac e seu romance de estréia On The Road, como os principais expoentes do movimento beat. A edição tem tradução do poeta Claudio Willer e inclui Kaddish o mais extenso poema da obra de Ginsberg, onde ele inventaria memórias de sua infância e juventude e exorciza o turbilhão afetivo do convívio com a loucura de sua mãe, Naomi.

Uivo foi dedicado a Carl Solomon, poeta urbano obcecado por dadaísmo, Antonin Artaud e partidário da mesma vida desregrada levada pelos beats. Ambos se conheceram no Instituto Psiquiátrico da Universidade de Columbia, onde Ginsberg fora internado, evitando transitar do ambiente acadêmico para a prisão, após ser flagrado em um carro roubado, em companhia de Herbert Hunckle, traficante e pai da expressão beat, que também povoou as páginas de Uivo e Junkie de William S. Burroughs. A obra de Solomon, composta por Perhaps e More Mishaps, editados entre 1966 e 1968, foi reunida em De Repente, Acidentes pela primeira vez, em 1985, pela L&PM e também ganha nova edição.

Publicado em 1971 pela City Lights, a emblemática editora de Ferlinghetti, O Primeiro Terço é uma reunião de manuscritos autobiográficos da infância passada entre vagabundos, pequenos delitos e reformatórios de Neal Cassady, protagonista de três romances de Jack Kerouac (On the Road, Visions of Cody e Book of Dreams), encontrado morto, em 1968, por overdose, sob os trilhos de uma ferrovia do México. Cassady também está em O Livro dos Sonhos de Kerouac, novamente, dando vida a Cody Pomeroy.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 20 (1999).

América em transe*


Obra-prima de José Agrippino de Paula, Panamérica é reeditado pela Papagaio (foto Mari Stockler, Agrippino aos 30 anos de idade)


Nestes tempos em que o flerte entre a literatura e o universo pop tem sido bastante celebrado, capaz de derivar-se com a velocidade de um produto, nada mais grato do que o anúncio da reedição de um autêntico expemplar dos experimentos literários dos anos 1960. Chegando tardiamente à sua terceira tiragem, Panamérica, de José Agrippino de Paula, faz Nick Hornby, o darling britânico obcecado por listas, parecer um dos cinco menos interessantes escritores jovens do mundo.

Apesar de compulsivamente citar referências pop, Agrippino constrói em Panamérica um anárquico mosaico de experimentações e evidente desprezo pela narrativa convencional. Instigante e provocador, o segundo romance de Agrippino, publicado em 1967, em nada se assemelha com o romanesco pop atual. É uma espécie de "Odisseia", tresloucada, que ao lado de Terra em Transe, de Glauber Rocha, a peça O Rei da Vela, de Zé Celso Martinez Corrêa e a instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, ajudou a fomentar os ideais estéticos da onda tropicalista de Gil, Caetano, Os Mutantes e Tom Zé. A obsessão de Agrippino pelo imaginário pop não surge como mero suporte da personalidade do protagonista, tampouco por vaidade do autor. O romance tem um narrador que surge nas páginas copiosamente identificado como “eu”, que, em seus delírios verborrágicos, envereda em uma egotrip pelos campos díspares da gigante e multifacetada América.

Cercado por anônimos ou comandando 200.000 figurantes em Hollywood; ao lado de Che Guevara, Harpo Marx, John Wayne e, lascivamente, envolvido com a finada Marylin Monroe, o protagonista de Panamérica transita pelas grandes contradições desta ambígua extensão de terra que compreende as américas do sul, central e do norte. Perplexa com o desbunde da juventude baby boomer, que cresceu com os milagres do Pós-Guerra e confrontou os estatutos de seus pais, a auto-intitulada “América” (os EUA), do final dos anos 1960, vivia sob a ameaça do comunismo e de uma crescente onda de rebeliões juvenis, dentro de casa. Fora dela, compactuava com o autoritarismo e até financiava a repressão, para conter a vulnerabilidade ideológica de seus miseráveis vizinhos, abaixo da Linha do Equador.

O romance foi lançado pela Civilização Brasileira no mágico ano de 1967 e esta terceira edição traz um invólucro com recomendações de Caetano Veloso, extraídas do prefácio assinado pelo compositor. Estratégia supérflua esta. O livro fala por si e ainda exala o mesmo frescor daqueles anos revolucionários. A Papagaio promete a reedição de Lugar Público, a estreia de Agrippino, fortemente influenciada por William Faulkner, lançada em 1965.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 22 (2001).