18.11.09

Gil, cidadão do mundo (perguntas não publicadas)

Em julho, entrevistei Gilberto Gil para fazer um balanço de sua carreira, à partir do exílio em Londres. Três perguntas ficaram de fora. Conteúdo na íntegra postado abaixo. (Foto: Luiza Sigulem)

Em defesa dos tropicalistas, acusados pelo dramaturgo Chico de Assis de reacionários e indiferentes a seriedade do momento que viviam, Décio Pignatari replicou - em debate ao Jornal Folha da Tarde -, que: “...a guerrilha foi criada com audácia e música também se cria com audácia” Nesse ambiente livre de hoje, onde se cria, registra e distribui música do próprio computador de casa, você acredita que algo realmente audacioso esteja por surgir na esfera de nossa música popular? Arrisca indicar possíveis caminhos e protótipos a quem busca romper com este aparente marasmo vigente?


Gilberto Gil: Acho que sim, porquê, mesmo que essas disponibilidades atuais de acesso a técnicas instrumentais, possam levar-nos a um fastio, uma sensação de vazio, de empobrecimento, de mesmice, é exatamente por isso que essa sensação se instala de algum momento de forma muito forte e ampla e atingindo muita gente. A revolta contra isso vai surgir. É sempre assim. Alguém vai desafinar o coro, de novo, fazer alguma coisa. O que, talvez, torne mais dificil a percepção disso ou desse momento - quando esse momento chega, se já chegou, quem encarna esse momento - a dificuldade de tudo isso é que, diferentemente das tencologias anteriores, essas tecnologias de agora permitem que essas coisas aconteçam, concomitantemente, de forma muito pulverizada. A própria reação a este imperativo tecnológico de hoje já é absorvida por este imperativo tecnológico. A capacidade de revolta, de rebelião, de contestação, já é parte do próprio processo. É como os comentaristas filosóficos contemporânos dizem: não há o lado de fora. Não há nada que você possa, de repente, dizer: isso aqui está de fora, isto aqui se coloca fora, porquê está tudo do lado de dentro. Vamos ver em que momento a gente vai perceber que alguma coisa está do lado de fora, de novo. Quando é que isso vai acontecer. É uma expectativa. Vai ser surpreendente, vai ser interessante, mas é difícil vislumbrar, hoje, pois tudo que se faz, todo desvio de norma, toda esquisitice, tudo, hoje, tem um espaço nessa interioridade abrangente da terra que nós vivemos.

No show que acompanhamos, você se referiu a seu último álbum Banda Larga Cordel como um pós-álbum. Poderia esclarecer este conceito?

Gilberto Gil: Já na época de lançamento de Banda Larga Cordel, em uma reportagem ao Correio da Bahia, falo claramente que a intenção ali era procurar novos caminhos, exatamente não escolhendo um elemento conceitual que costurasse as canções todas, não tendo, necessariamente, a necessidade de escolher uma faixa para abrir ou prá fechar o disco, uma canção de trabalho. Toda esta aleatoriedade acabou marcando a vida do disco eu acho que tudo isso já é uma admissão muito clara de que o pós-álbum está aí, muito claramente. Pessoas querendo comprar canções separadamente, uma, duas, três, quatro, cinco, seis. Qual é o significado que vai ter, daqui a pouco tempo, o fato de você ter doze músicas em um álbum? Qual vai ser o significado do álbum? A não ser em casos de genialidade, como é o do Caetano, onde o empenho, mais o talento podem dar conta de manter uma estrutura fechada em um meio aberto a questão está aí como um desafio para nós, artistas.

Falamos, há pouco, de Jorge Benjor e tem uma canção de Orlandivo que se chama Um abraço no Bengil, que homenageia você e ele . Quando ouvi seu filho Bem ser apresentado como Bem Gil, no show que encerrou a turnê Banda Larga Cordel, em Osasco, não sabia a grafia correta do nome, e me veio, de imediato, a lembrança desta canção. Fiquei curioso em saber se você pensou na música, quando deu nome ao menino. Talvez uma espécie de alusão a homenagem que, ao mesmo tempo, não deixaria de ser uma homenagem a Jorge?

Gilberto Gil: Não, não é. Tanto que eu acho que não lembro desta música. Me lembro muito bem do Orlandivo “... sentado na calçada de canudo e canequinha” (cantarola em alusão à música Bolinha de Sabão, de Orlandivo e Adilson Azevedo). Gostava muito do Orlandivo. Ele preprava esta fusão entre o funk, a bossa e o samba que o Tim Maia veio depois manifestar de forma mais explícita abrindo caminho prá essa turma toda: Cláudio Zoli, Carlos Dafé, Bebeto, O Orlandivo já era precursor de tudo isso, mas o nome do Bem não tem referência a isso, não. Vou até recuperar, vou procurar esta canção.

6.11.09

Entrevista Wilson das Neves - Íntegra

Íntegra da entrevista realizada em janeiro de 2009 com Wilson das Neves, base do texto O som quente e o dom de Wilson, publicado em Março na revista Brasileiros (foto: Luiza Sigulem)

As biografias que pesquisei são unânimes em afirmar que você iniciou no instrumento aos 14 anos. A partir daí, você teve estudos teóricos ou foi um aprendizado autodidata?
Não, eu não fui estudar aos 14 anos. Nessa idade eu ia muito ao candomblé. Aliás, desde muito garoto eu era fascinado pelo tambor de candomblé, pois minha família é candomblecista. Somos todos negros, aliás, afrodescentes, pois, hoje em dia, não pode chamar de crioulo, se não, ofende. Comecei a estudar o instrumento mesmo com 18 anos, quando estava no exército, em 1954.

Antes disso, como era o menino Wilson? Já tinha interesse por música, influências familiares?
Sempre gostei muito de música, mesmo porque eu tinha uma tia que quase toda semana, por qualquer motivo, dava festas em casa. Aniversário do cachorro e ela dava festa. Ela gostava de ver a casa sempre cheia de gente e a música era um elemento que não podia faltar. Havia muitos álbuns de jazz bands que tocavam nas festas dela e eu ficava, ali, prestando atenção a tudo. Rolava também, música regional, grandes orquestras. Um ambiente que muito me estimulava e foi lá que eu conheci um baterista que começou a tocar na casa dela, quando as festas passaram a ter música ao vivo, chamado Edgard Nunes Rocca, conhecido por todos como Bituca.

Bituca era professor profissional?
Não. Eu ia aos bailes, acompanhando o Bituca, como uma espécie de roadie. Estava com 18 anos, servindo o exército, e decidi ajudá-lo nos bailes porque não tinha dinheiro para entrar. Enquanto ele tocava, eu ficava dançando por ali, e tal, depois, ao final do baile, eu o ajudava a levar o instrumento de volta e assim foi, até que um dia ele perguntou se eu não gostava de bateria, disse que sim e ele me aconselhou: "Mas, então, por que você não estuda o instrumento?!". Eu não tinha referência alguma, mas ele me levou a uma escola e comecei a estudar. Depois disso, ia ao baile com ele e já não dançava mais, ficava ali, do lado, de olhos e ouvidos atentos, aprendendo. Depois de um ano e pouco, o Bituca saiu da orquestra. Fiquei no lugar dele e estou até hoje tocando por aí.

Neste período, ainda havia muita resistência à invasão da bateria no samba?
Não, nesta época a bateria já era bem aceita e difundida. A resistência tinha ficado pra trás. Acontece que a bateria não é um instrumento que o americano criou para tocar samba, ela foi criada para tocar a música deles. Já na década de 1940, a bateria chegou fortemente ao Brasil e começamos a fazer nossa tradição. Nesse período, embora anônimos, já havia grandes bateristas. Músicos que liam e escreviam música.

Algum grande baterista deste período que você destacaria e não é lembrado?
Não, mesmo porque nossa memória é curta. Não se creditava, não se filmava, não se registrava nada. Músico profissional era anônimo mesmo e, por incrível que pareça, na grande indústria, quem começou a colocar nomes dos músicos nos créditos dos discos foi a Elis Regina. Quase nos anos 1970, quando toquei com ela. Antes disso, ninguém dava a menor atenção, saíam nos créditos o compositor e só, nem o nome do maestro que arranjou o disco era respeitado.

Você fez parte de uma geração de grandes bateristas, como Milton Banana, Edison Machado, Airto Moreira e o Dom Um Romão. Todos com um estilo personalíssimo, mas ligados à cadência da bossa. Particularmente, a quê você acha que se deve a famosa "batida diferente" da bossa nova? Foi mero casamento do samba com o jazz?
Para mim, bossa é samba e samba é um ritmo muito complexo. Se você observar bem, ninguém toca igual a ninguém, mas tudo deriva do samba e tanto faz se é bossa nova. Dêem o nome que quiserem dar: é uma variação do samba e cada um toca do seu jeito. Agora, lógico, que na bateria tocada por aqui, sempre houve muita influência americana. O instrumento não foi criado para tocar samba e os métodos são todos americanos. Para fazermos um método de samba para bateria no Brasil teremos que enfrentar problemas seríssimos, como investir em partituras.

Neste seu início de carreira, ainda nos anos 1950, você teve um envolvimento intenso com a música erudita. Tocou na orquestra Ubirajara Silva e chegou a integrar a filarmônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Como foi essa ligação? Havia mesmo interesse em prosseguir na música erudita?
Não, o que me movia mesmo era a curiosidade das descobertas e o fascínio do aprendizado. Minha intenção não era dizer "vou tocar no Teatro Municipal". Queria mesmo era vivenciar aquele universo da música erudita, mas, daí que eu continuava indo ao candomblé, gostava de música popular e, se você for ver bem, em uma sinfônica, nas horas vagas, quase todos os instrumentistas, metais, cordas, sopro, trabalham com música popular. Minha intenção era aprender com propriedade e acho que aprendi. Toquei em importantes espetáculos, como Mefistófoles e Aida, era como estar no céu, no olimpo, mas, pouco tempo depois, abandonei esse ambiente da música erudita, pois não me pagavam direito e eu vivia de música.

O período que sucede a explosão da bossa revelou grandes instrumentistas e percebe-se nos créditos de grandes álbuns do período que boa parte desses músicos trafegavam pelas mesmas gravações. Como era esse ambiente? Havia alguma espécie de competição ou era mesmo forte a ligação entre essa turma?
Não, ao menos eu acredito que não havia competição. As gravadoras chamavam os músicos que podiam resolver o problema. Não se chamava por simpatia, pelo nome ou pela cor. Nada disso. Era essencialmente a questão do músico que resolve, entende? Os arranjadores tinham uma relação de músicos que podiam contar e que se encontravam nos estúdios com frequência. Em geral, eles se baseavam pelo seguinte critério: "Chama fulano! Ah, fulano não pode?! Então chama sicrano!". Chamavam quem resolvia e ponto final!

Mas nos combos de samba-jazz aí, sim, a relação era de verdadeira afinidade, não é?
Sim. Com a afinidade, começaram a surgir os trios e os quartetos no ambiente da bossa. Por um breve período, valorizou-se a música instrumental, que não era prestigiada por aqui. Até hoje no Brasil é muito complicado. As pessoas não ouvem música instrumental, não tem conhecimento. Tem uma minoria que gosta, mas, enfim, daí, vieram os conjuntos, as orquestras de baile, com crooner e tudo.

Ao longo destes cinquenta anos de carreira, você teve a honra de participar de uma infinidade de álbuns que são considerados obras-primas da música popular brasileira como o Coisas, do maestro Moacir Santos. A despeito destes álbuns unânimes, houve algum que te surpreendeu, com um resultado final maior do que a expectativa?
Olha, eu gravei com mais de seiscentos artistas, gosto de tudo que fiz e faria tudo de novo. Quando eu sento no meu instrumento, eu não sento prá brincar, não. Sento prá fazer direito ou pelo menos tento. Lógico que tem coisas especiais. Imagine você como eu fiquei, quando o meu professor de harmonia, Moacir Santos, me convidou prá gravar com ele. Fiquei, como diria o Chico Anísio: "Com o peito em festa e o coração à gargalhar". Fiquei feliz da vida por ele ter me chamado prá gravar com ele.

À propósito deste período, existe uma polêmica de que o Neco, seu parceiro no conjunto Os Ipanemas, seria o verdadeiro autor do álbum Samba Nova Concepção, creditado ao Eumir Deodato à frente dos Catedráticos. Você, que esteve presente, conduzindo a bateria, o que diz à respeito?
Não, o álbum não é do Neco, não. O Eumir Deodato é um grande arranjador. Chegou moço, escrevendo bem, escrevendo bonito. O Neco era integrante dos Catedráticos, tocava violão no disco, mas isto é intriga da oposição. O Lyrio Panicalli, o grande maestro, queria ir lá ver as partituras do Eumir, prá analisar, prá ver como é que era, pois já era uma coisa diferente. Muito precoce. Daí, talvez por isso, que já diziam que não era dele. Mentira. Era dele, sim. Gravei e toquei com ele.

À propósito do Deodato, Sérgio Mendes, Dom Um, Raul de Souza, Marcos Valle, Airto e Flora. Um sem número de músicos brasileiros fizeram carreira e permaneceram no exeterior. Como foram suas passagens por terras estrangeiras? Permanecer no Brasil foi uma escolha pessoal?
Eu nunca tive a intenção de morar fora daqui, não. Opção minha. Acho que minha terra é aqui. É aqui que eu vou fazer tudo que eu tenho que fazer. Vou lá, toco, gravo; já fui várias vezes, já acompanhei vários artistas, mas meu lugar é aqui. Agora, trabalhando com o Chico, há vinte e cinco anos, rodo o mundo. Aliás, essa semana ele me ligou prá me cumprimentar, porquê, sou bisavô. Tenho um bisneto, Joãozinho, filho da Graça. Tá lá me dando prazer e tenho que agradecer a minha neta, por me fazer bisavô vivo, porque bisavô morto não adianta nada!

Depois de sair do ambiente da bossa, quando você inicia uma carreira solo, partindo do Juventude 2000 (1968), e nos outros dois álbuns que viriam, à seguir, à despeito de ainda haver vestígios de brasilidade, sua música passa por uma guinada radical, pois vai somando elementos mais modernos, universais e se fundindo com o funk, com o soul, o jazz latino. Como foi essa mudança? Houve intervenção de produtor, direção artística, ou foi tudo planejado? Que som fazia sua cabeça ná época?
Olha, papo meu e do Geraldo Vespar que fez os arranjos do primeiro disco, Juventude 2000. Papo nosso: "Ah, vamos fazer uma coisa assim mais ousada, com uma intenção de atingir a garotada". O nome do disco já sugere isso. Agora, olha eu gosto de tudo, gosto de música. Não gosto de barulho, nem negócio de: "Saiu um som!" Qualquer instrumento bem tocado me faz bem. Tem gente que não gosta de Astor Piazzolla. Então, não gosta de nada. Eu gosto de tango, como qualquer outro ritmo. Música é universal. Música não fala, toca.

À partir dos anos 1980, você volta a assumir o papel do homem de estúdio, e volta a trabalhar com uma infinidade de músicos brasileiros. O período foi marcado pela explosão do rock no Brasil e uma aparente estagnação da mpb. Você compartilhava desta sensação? A escolha de voltar a tocar profissionalmente tem a ver com isso?
Olha, quando você gosta do que faz, não vê problema em nada. Como diz o Nelson Sargento: “O samba agoniza, mas não morre!” e, então, tá vivo aí. Ele cai um bocadinho e se levanta, quando é bom samba, porquê, no meio de tanta coisa que se grava ou se gravou na bossa nova, no meio de tanta coisa de ontem e de hoje, tem muita sandice. Tinha bossa sandice, como também tem olodum sandice, pagode sandice, axé sandice. Tem os bons e os sofríveis. Não vou eu dizer que são ruim, porquê se faz sucesso prá um milhão de pessoas, quem sou eu prá dizer que é ruim, não é? Agora tem muita coisa que é sandice e isso aí precisa falar mal mesmo.

Desde 1997, você resolveu levar à público os dotes de cantor e compositor, lançando dois álbuns de canções, o que é irônico, se considerarmos que, praticamente no mesmo período, sua carreira começa a ser redescoberta por uma juventude que fica fascinada pelo seu envolvimento com a música instrumental. Como foi tomar esta decisão? Cantar e compor era segredo antigo?
Eu já tinha gravado sete, oito álbuns instrumentais. Me convidaram prá gravar mais um e eu falei: não quero! Era um projeto, Performance, que tinha na CID. O Esdras, produtor, me convidou: "Vamos fazer um disco instrumental?" Ah, fiz tantos, você tem que ficar convidando colega prá te ajudar e sabe que instrumental não dá dinheiro, é na faixa e eu falei: "Se é prá gravar assim, eu quero gravar minhas músicas". Eu tinha já muitas músicas, mas não tinha a ousadia de gravar, nem de mostrar prá ninguém.

E você vem compondo, desde quando?
Desde mil novecentos e setenta e pouco, que venho compondo minhas músicas. Compondo e guardando. Daí, que resolvi gravá-las, em 1997, mas minha idéia não era cantar. Era montar o meu conjunto e ia trazer um intérprete, cantor, cantoras. Então o Esdras me pediu: "Traz tuas músicas pra gente ouvir". Ele ouviu e falou: "Muito bom, vamos gravar!" Eu disse: "Então, vamos, mas quem é que vai cantar?" No que ele respondeu: "Do jeito que você está cantando aí, canta você mesmo". Daí, que virei cantor. Não foi programado, nem tive a intenção de ser cantor. Aliás, na minha vida não tem nada programado. A única coisa que tem progamado na minha vida é: quero ser feliz!

3.11.09

Irmão cara de pau


Reincidente, guitarrista Sérgio Dias reassume o espólio dos Mutantes e lança Haih... or amortecedor. Novo álbum de inéditas soma capítulo infeliz à gloriosa carreira do grupo criado pelos irmãos Baptista.


Ringo Starr convence Paul McCartney a reunir os Beatles e lançarão álbum de inéditas dos fab four em 2010. Kris Novoselic e David Grohl aceitam convite de Frances Bean Cobain, filha de Kurt, e lançam Nevermind Daddy, novo álbum do Nirvana. Absurdos? Oxalá estejamos certos, pois dá medo acreditar que, algum dia, sandices como estas possam ocorrer. Voltemos a 2008, ano de balanço da celebrada “reunião” dos Mutantes. Ao fim da turnê internacional, iniciada em 2007, a despeito do abandono de seu mais célebre tripulante - o cantor, compositor e multi-instrumentista Arnaldo Baptista -, o irmão Sérgio Dias, em momento lóki, anunciou que pretendia continuar conduzindo a nave louca dos Mutantes e preparava material inédito, a ser lançado em 2009. A profecia se fez cumprir e Haih... Or Amortecedor chegou as lojas americanas e europeias no início de setembro. O mercado interno, em uma rara manifestação de bom senso, não deu a menor bola para a atitude tresloucada. Simplesmente, não vai lançar o álbum em terra brasilis. Quem quiser pagar para ter a obra física, vai ter de dispensar alguns dólares ou euros.

Sandice feita, resta agora analisar o resultado. No melhor estilo “assim é se lhe parece” Haih Or Amortecedor sugere roteiro calculado. Os hinos que abrem e fecham o álbum aludem ao velho expediente seargent peppers de prólogo e epílogo, denotando estarmos diante de mais uma obra conceitual. Mas a cada decibel emanado nos falantes, temos a desagradável sensação de deja-vú e paródia. Ecos assombrados de uma história que capitulou com a história. Zélia Duncan, “cereja” do bolo, para a maioria dos fãs antigos que criticaram a retomada em 2007, saltou da canoa e coube a uma espécie de finalista do programa Ídolos assumir a vaga - veementemente, rejeitada por Rita Lee. O grande baterista Dinho Lemos, integrante oficial, à partir do segundo álbum Mutantes (1969), topou a parada. Acrescente-se, às lacunas, mais alguns músicos profissionais, um figurino negro, que dialoga com o corvo estampado na capa do álbum, e temos elenco e imagem pública deste: vale a pena ouvir de novo (será!?), Quanto aos novos temas apresentados, na ausência de compositor e letrista da estatura de Arnaldo, a little help from the friends: o produtivo Tom Zé assina seis letras e Jorge Ben, que à quatro décadas, deu Minha Menina para Serginho injetar decibéis selvagens de fuzz no samba-rock, repetiu a dose de generosidade e tirou do baú a canção O Careca. Pronto: sete das onze canções ganharam grife insuspeita e o que poderia sugerir uma ótima saída para a aparente maior deficiência deste "Mutantes safra 2009" revelou-se apenas mais um elemento dos propósitos dúbios desta retomada.

Defensores de uma nostalgia nociva irão bradar: "Mas os Doors, o Led Zeppelin, The Who, Animals, Kinks, e tantos outros, já fizeram o mesmo. Qual o problema!?" E é exatamente por esse grande histórico de fiascos que a empreitada parece ainda mais descabida e ambiciosa. Não se trata de canonizar Os Mutantes e tombá-los como patrimônio imaterial. Sérgio, Dinho, e os músicos que os acompanham, poderiam ter se contentado em cair na estrada e explorar o incrível repertório acumulado. Pretender dar continuidade a algo que, evidentemente, já teve seu fim assistido, há mais de três décadas, e deixou um legado irretocável, que o mundo todo vem aprendendo a endossar, não é lá "qualquer bobagem", com o perdão da paráfrase, meus amigos. Estejamos certos.

Serginho cresceu nas ruas de uma Pompéia bem informada e jovem, celeiro de bandas de garagem da zona oeste paulista. Criou um estilo pessoal, mas deve ter estudado técnicas e trejeitos de todos seus heróis da guitarra. George Harrison, Jeff Beck, Eric Clapton, Jimi Hendrix, Pete Townshend e Roger McGuinn, certamente, entre eles. Há um pouco de cada um deles em seus acordes, riffs e solos, mas não foi esse gosto apurado que o tornou um dos mais criativos músicos de sua geração. Some-se aí horizontes muito mais amplos. A música nova do maestro Rogério Duprat, a ousadia em estúdio de Manoel Barenbein, os experimentos do irmão Claudio César - que "turbinava” guitarras, pedais e amplificadores -, a companhia de gente articulada em questões direcionais da música brasileira como Caetanto Veloso e Gilberto Gil. A guitarra de Sérgio era feita de seis cordas, mas também de ótimas referências e companhias. Gil, questiona em Pega Voga Cabeludo, de seu álbum de 1968, onde toca e canta acompanhado dos Mutantes: "Serginho, cabeludo danado! Quem foi que lhe disse que você toca guitarra bem, rapaz?" Gil ironiza, mas Sérgio foi muito mais que um grande guitarrista. Como Lanny Gordin e Heraldo do Monte, foi um ícone de seu instrumento e de seu tempo. Justamente por este motivo, teria total autonomia para seguir adiante sem ancorar-se nos Mutantes. Mesmo que fosse em seus álbuns instrumentais, onde poderia lidar com seus melhores predicados e até agradar um séquito mais dócil de fãs, mais afeito à técnica que a estética. À propósito, com este novo álbum, não há dúvidas que passará a ser visto com um pouco mais de desconfiança por boa parte dos fãs da banda de rock mais instigante e criativa que este País já ousou ter.

Pocket Beat*


Clássicos da literatura beat voltam ao mercado em coleção de bolso


Amantes da literatura beat tem, além do preço acessível, mais quatro bons motivos para celebrar a coleção Pocket, da L&PM. O segundo deles é a reedição de um clássico: lançado em 1956, Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg rendeu, no ano seguinte, à seu editor, o poeta Lawerence Ferlinghetti, um processo criminal por pornografia e a tentativa de censura por obscenidade. Livre das suspeições jurídicas, o livro vendeu milhões de exemplares e projetou Ginsberg, ao lado de Jack Kerouac e seu romance de estréia On The Road, como os principais expoentes do movimento beat. A edição tem tradução do poeta Claudio Willer e inclui Kaddish o mais extenso poema da obra de Ginsberg, onde ele inventaria memórias de sua infância e juventude e exorciza o turbilhão afetivo do convívio com a loucura de sua mãe, Naomi.

Uivo foi dedicado a Carl Solomon, poeta urbano obcecado por dadaísmo, Antonin Artaud e partidário da mesma vida desregrada levada pelos beats. Ambos se conheceram no Instituto Psiquiátrico da Universidade de Columbia, onde Ginsberg fora internado, evitando transitar do ambiente acadêmico para a prisão, após ser flagrado em um carro roubado, em companhia de Herbert Hunckle, traficante e pai da expressão beat, que também povoou as páginas de Uivo e Junkie de William S. Burroughs. A obra de Solomon, composta por Perhaps e More Mishaps, editados entre 1966 e 1968, foi reunida em De Repente, Acidentes pela primeira vez, em 1985, pela L&PM e também ganha nova edição.

Publicado em 1971 pela City Lights, a emblemática editora de Ferlinghetti, O Primeiro Terço é uma reunião de manuscritos autobiográficos da infância passada entre vagabundos, pequenos delitos e reformatórios de Neal Cassady, protagonista de três romances de Jack Kerouac (On the Road, Visions of Cody e Book of Dreams), encontrado morto, em 1968, por overdose, sob os trilhos de uma ferrovia do México. Cassady também está em O Livro dos Sonhos de Kerouac, novamente, dando vida a Cody Pomeroy.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 20 (1999).

América em transe*


Obra-prima de José Agrippino de Paula, Panamérica é reeditado pela Papagaio (foto Mari Stockler, Agrippino aos 30 anos de idade)


Nestes tempos em que o flerte entre a literatura e o universo pop tem sido bastante celebrado, capaz de derivar-se com a velocidade de um produto, nada mais grato do que o anúncio da reedição de um autêntico expemplar dos experimentos literários dos anos 1960. Chegando tardiamente à sua terceira tiragem, Panamérica, de José Agrippino de Paula, faz Nick Hornby, o darling britânico obcecado por listas, parecer um dos cinco menos interessantes escritores jovens do mundo.

Apesar de compulsivamente citar referências pop, Agrippino constrói em Panamérica um anárquico mosaico de experimentações e evidente desprezo pela narrativa convencional. Instigante e provocador, o segundo romance de Agrippino, publicado em 1967, em nada se assemelha com o romanesco pop atual. É uma espécie de "Odisseia", tresloucada, que ao lado de Terra em Transe, de Glauber Rocha, a peça O Rei da Vela, de Zé Celso Martinez Corrêa e a instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, ajudou a fomentar os ideais estéticos da onda tropicalista de Gil, Caetano, Os Mutantes e Tom Zé. A obsessão de Agrippino pelo imaginário pop não surge como mero suporte da personalidade do protagonista, tampouco por vaidade do autor. O romance tem um narrador que surge nas páginas copiosamente identificado como “eu”, que, em seus delírios verborrágicos, envereda em uma egotrip pelos campos díspares da gigante e multifacetada América.

Cercado por anônimos ou comandando 200.000 figurantes em Hollywood; ao lado de Che Guevara, Harpo Marx, John Wayne e, lascivamente, envolvido com a finada Marylin Monroe, o protagonista de Panamérica transita pelas grandes contradições desta ambígua extensão de terra que compreende as américas do sul, central e do norte. Perplexa com o desbunde da juventude baby boomer, que cresceu com os milagres do Pós-Guerra e confrontou os estatutos de seus pais, a auto-intitulada “América” (os EUA), do final dos anos 1960, vivia sob a ameaça do comunismo e de uma crescente onda de rebeliões juvenis, dentro de casa. Fora dela, compactuava com o autoritarismo e até financiava a repressão, para conter a vulnerabilidade ideológica de seus miseráveis vizinhos, abaixo da Linha do Equador.

O romance foi lançado pela Civilização Brasileira no mágico ano de 1967 e esta terceira edição traz um invólucro com recomendações de Caetano Veloso, extraídas do prefácio assinado pelo compositor. Estratégia supérflua esta. O livro fala por si e ainda exala o mesmo frescor daqueles anos revolucionários. A Papagaio promete a reedição de Lugar Público, a estreia de Agrippino, fortemente influenciada por William Faulkner, lançada em 1965.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 22 (2001).

Kung Fu à italiana*

Subestimado por Jackie Brown, Quentin Tarantino volta a tumultuar o mundo do cinema com dois novos filmes: Kill Bill Vols. 1 e 2

Quase uma década após conquistar a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor roteiro original com o anárquico Pulp Fiction, seis anos após seu último filme atrás das câmeras, Jackie Brown, o celebrado diretor americano Quentin Tarantino voltará, ainda este semestre, às telas brasileiras com Kill Bill vol. 1, filme que pratica uma mistura inimaginável de gêneros para contar, em dois “volumes”, a saga vingativa da personagem A Noiva, interpretada pela atriz Uma Thurman. O retorno triunfal é bastante oportuno para uma revisão da obra do diretor, que completou 41 anos, recentemente.

Cinéfilo compulsivo e devorador de gêneros tão distintos como a Blaxploitation, a Nouvelle Vague (sua produtora Band-a-Part é uma referência ao filme de Godard), os filmes de artes marciais da Shaw Brothers e os western-Spagetthi do mestre Sergio Leone, Tarantino instaurou um novo estilo que, indiscriminadamente, dialoga em ritmo frenético de metalinguagem com tudo de mais comercial e experimental, de melhor e de pior que foi produzido ao longo deste primeiro centenário de sétima arte.

À partir de Cães de Aluguel (Reservoir Dogs) o diretor entrou em escala ascendente e com o triunfo de Pulp Fiction, em Cannes, seu nome passou de simples referência do melhor cinema independente produzido na américa, dos anos 1990, para tornar-se um adjetivo recorrente. O que, à princípio, parecia um justo reconhecimento ao talento genial de um jovem diretor que colocaria hollywood e suas velhas convenções de pernas prá cima, rapidamente, tornou-se uma epidemia. Não tardou para que diretores dos mais conservadores começassem a tingir páginas de roteiro com rasas paródias dos impagáveis diálogos de Tarantino e o pior, sob o rótulo de cinema independente, qualquer porcaria com duas ou três seqüências, supostamente transgressoras, passou a ganhar o status de cult movie. Exemplo maior é o filme Amor-à-Queima Roupa (True Romance) que, embora baseado em argumento e roteiro original do próprio Tarantino, por si só não foi capaz de transformar o medíocre Tonny Scott de Ases Indomáveis (TopGun), em um diretor respeitado.

O próprio Tarantino, parecendo prever que o excesso de exposição poderia ser demasiadamente prejudicial a sua reputação de enfant-terrible de Hollywood, depois do estrondoso sucesso de Pulp Fiction - inimaginável para um filme de três horas, com narrativa fragmentada e repleto de situações absurdas -, abandonou a direção, por três anos, envolvendo-se em parcas aparições como ator e assinando roteiros. Em 1997, Tarantino filmou Jackie Brown, cuja protagonista presenteou e tirou da obscuridade a atriz Pam Grier, musa dos filmes com temática blaxploitation dos anos 1970. Criticado por ser narrativamente mais conservador, se comparado a seus antecessores, ao menos alguns elementos em comum unem os três filmes, a começar pela escolha de atores decadentes como foi o caso de Grier e de John Travolta em Pulp-Fiction; a paródia dos filmes de gangster nos dois primeiros filmes e o resgate do imaginário de gêneros periféricos enterrados pelo cinema espetáculo, instaurado com os primeiros blockbusters dos anos 1970, como a saga Star Wars.

Em sua curta trajetória, Tarantino foi precocemente celebrado como gênio para ser julgado, anos mais tarde, por alguns destes mesmos críticos, como um obsessivo iconoclasta e mero deturpador de escolas canonizadas como a Nouvelle Vague. Diante de uma cinematografia tão reduzida e recente, é cedo arriscar veredictos. Resta aguardar o que nos reserva os dois volumes de Kill Bill, mas é inegável que, para o bem e para o mal, à partir de Tarantino, o cinema americano respira novos ares e sobrevoa por horizontes mais amplos. Saber se o jovem diretor vai entrar para o seleto grupo de ítalo-americanos geniais como Scorsese, De Palma, Coppola e Leone é outra questão que só o tempo vai revelar.

*Originalmente publicada na revista Elenco, edição 1 (2004)

Muito além do sargento pimenta*


1967, ano de lançamento de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, foi um ano de álbuns mágicos para o rock.

2007 marca os 40 anos de lançamento do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles. Celebrações lembram a efeméride pelos quatro cantos do mundo e não é para menos: verdadeiro tratado psicodélico que elevou o rock ao status de arte, Sgt. Pepper’s fomentou uma revolução sem precedentes. Depois dele, música, moda e comportamento jovem jamais seriam os mesmos. Clássico absoluto, é considerado por muitos o melhor álbum de rock de todos os tempos e obra-prima do grupo. Muitos aficcionados pelos fab four defendem o título para o álbum anterior Revolver, mas, justiça seja feita, embora os Beatles já ensaiassem, desde 1965, uma nova alquimia sonora que culminou em Sgt. Pepper’s, o álbum não inaugura os experimentos psicodélicos no rock e nem é a última palavra em expansão musical, o que não é demérito algum.

Um ano antes, o grupo texano liderado pelo tresloucado poeta Roky Erickson, intitulou o primeiro álbum de seus 13th Floor Elevators de Psychedelic Sounds of. Pela primeira vez o termo psicodélico foi associado a música. No mesmo ano, Brian Wilson, gênio por trás dos Beach Boys, motivado pelo desafio de fazer um álbum tão bom quanto Rubber Soul, lançado em 1965 pelos Beatles, esqueceu de vez praia, surfe, garotas e carrões para isolar-se em estúdio e criar intrincadas composições de arranjos inusitados que culminariam no belíssimo Pet Sounds.

Do outro lado do atlântico, na Inglaterra, grupos como Kinks, The Who, Cream e Animals abandonavam o rock de bases negras e rhythm & blues para enveredar pelos caminhos subjetivos do psicodelismo. Um certo James Marshall Hendrix, empresariado por Chas Chandler, baixista dos Animals, abandonaria o ostracismo em sua terra natal e desembarcaria em solo britânico para revolucionar a música e reinventar a guitarra elétrica, à frente de seu Jimi Hendrix Experience. Compositor prolífico, Hendrix cometeu a façanha de lançar duas pérolas em 1967, o álbum de estréia Are you experienced e seu sucessor Axis: Bold as love.

Toda uma efervescência criativa parecia contaminar a produção da época e os Beatles, como agentes multiplicadores e ícones máximos da cultura jovem, tiveram papel fundamental em disseminar este zeitgeist com os álbuns que sucederam Rubber Soul. 1967 foi um ano mágico para o rock e, em tempos de fadiga criativa e bandas que parecem sair de uma produção serial (vide a febre emocore), nunca é demais lembrar à juventude desta geração que Sgt. Pepper’s não foi um fato isolado. Há dezenas de álbuns lançados no mesmo ano com a mesma magnitude criativa. Frutos de uma época em que, em detrimento de parcos recursos tecnológicos – a maioria destes álbuns foram gravados em singelas mesas de som de quatro canais -, havia criatividade, inquietude e invenção de sobra. Uma lista com dez álbuns fundamentais, lançados no mesmo ano, segue, abaixo. Boa viagem!

Love – Forever Changes
Rolling Stones – Their Satanic Majesties request
The Who – Who Sell Out
Eric Burdon & The Animals – Winds of Change
The Kinks – Something Else by The Kinks
The Deviants – Ptoff!
The Byrds – Younger Than Yesterday
The 13th Floor Elevators – Easter Everywhere
Pink Floyd – The Piper at The Gates of Dawn
The Electric Prunes – I Had Too Much to Dream (Last Night)

*Originalmente publicada no site Brasil Wiki. (2007).

Nirvana nunca mais*


O movimento que nunca existiu; as ressurreições de Kurt Cobain e a morte do rock.

Onipresente, em veículos de imprensa do mundo todo, desde o início do ano, a primeira década sem Kurt Cobain tem servido de mote de fundamentadas teses sobre a representatividade do ícone e do movimento, involuntariamente, capitaneado por ele dentro do imaginário pop recente.

Talvez ainda não seja o momento mais oportuno para inventários acerca da influência da produção musical dos anos 1990, pois muitas das facetas reveladas por esta década de transição ainda estão em contínua ebulição. Vide a nova ressurreição do rock celebrada por esta cena de bandas como os Strokes, Kings of Leon, White Stripes, The Vines e afins que, méritos criativos à parte (ou a ausência destes), traz novamente à tona uma grande leva de bandas que emergem das camadas subterrâneas dos selos e circuitos independentes para escalarem as grandes paradas americanas e européias, rumando pelo mesmo caminho trilhado pela geração pós new-wave e o furacão do-it-yourself do punk.

Fato é que, hoje, este suposto espírito de renovação bradado pelos entusiastas deste velho rock de nova embalagem só encontra legitimidade nos experimentos que, sem pudor, apostam em uma alquimia livre de gêneros e ritmos, pois se houve algo de realmente transitório na produção musical dos 1990, seu maior campo de propagação construi-se em torno do fim da dicotomia entre a música orgânica e a música mecânica. Este velho demônio que conduziu o rock e outros gêneros à fadiga criativa vem sendo progressivamente exorcizado no eclético laboratório de niilismo estético de uma geração que, lentamente, condena a figura do compositor e da canção, tal qual a conhecemos no século passado, a um lento fim. Vide o culto ao DJ, a propagação do sampler em gêneros musicais alheios ao universo do rap e da música eletrônica e as novas ferramentas de criação e distribuição musical ensaiadas pela internet.

A pergunta que fica: o que tudo isso tem a ver com Nirvana e Kurt Cobain? Tudo e um pouco mais. Ícone maior do que ficou conhecido como grunge, Cobain, aprisionado à tormenta de sua dependência química e em meio às frustrações com sua meteórica ascensão, sobretudo, devia sentir-se muito decepcionado por ter se tornado ícone de um movimento que nada representou e, de fato, nunca existiu.

Com a explosão de Nevermind e o inesperado sucesso de seu primeiro single Smells Like Teen Spirit a imprensa musical mundial e, consequentemente, a indústria fonográfica, abriram olhos para o fato de que, em cenas locais isoladas, havia uma enorme quantidade de bandas que, oportunamente colocadas lado a lado, poderiam vender uma imagem de unidade em torno de uma revisão inovadora de gêneros, aparentemente, tão próximos como a água e o azeite. A maior via de tráfego estético destas bandas era um som híbrido da urgência punk com o peso e a densidade das bandas embrionárias do heavy-metal. Sex Pistols e Black Sabbath; Blue Cheer e Black Flag. Como uma equação matemática, o som autêntico de bandas oriundas de celeiros do rock independente, como as dos selos Matador! e Sub Pop, berço primeiro do Nirvana, foi transfigurando-se em uma avalanche de cabeludos uniformizados com camisas de flanela, gorros e cavanhaques - cavanhaques estes que, diga-se de passagem, caíram no gosto popular por aqui e, até hoje, estão onipresentes em diversos círculos que pouco ou nada tem a ver com a muralha de decibéis de bandas como Mudhoney, Screaming Trees e Love Battery.

Em suma, de uma forma muito precoce, aconteceria com o grunge o mesmo que ocorreria com o psicodelismo nos anos 1970 e com o punk e pós-punk nos anos 1980. Manifestações que nascem autênticas, são absorvidas pela indústria, rapidamente, embaladas para consumo e dispostas em prateleiras de hiper-mercados e vitrines da alta moda. O que foi vendido em larga escala e defendido até hoje como grunge não passa de uma equivocada coleção de caricaturas das bandas mais representativas e obscuras. Alice in Chains, Pearl Jam e derivações bastardas como Stone Temple Pilots, Collective Soul e Creed formaram um verdadeiro laboratório de clonagem. Muita flanela e cavanhaque, pouca despretensão e legitimidade.

Emblemático desta incoerência é o caminho traçado, ao longo destes dez anos, pelo líder do Soundgarden, o gogó de ouro Chris Cornell que, apesar de támbem ter surgido na Sub Pop e assinar álbuns menos afetados naquele começo de anos 1990, foi praticar sua técnica David Coverdale no supergrupo Audioslave, ao lado dos remanescentes do Rage Against the Marchine, PSTU do rock americano dos anos 1990 que, à despeito de ter mais personalidade do que as bandas citadas acima, também surfou nas ondas progressistas e na larga avenida aberta por Cobain para uma infindável lista de lixo musical aglomerado em um rótulo genérico, à princípio chamado de grunge - termo este utilizado por Bruce Pavitt, sócio da lendária Sub-Pop, para definir o som feito pelo Mudhoney no final de 1988, três anos antes da revolução de Cobain -, até chegar aos genéricos dos genéricos, o rock alternativo, o famigerado indie-rock e afins.

É por estas e outras que, aparentemente, deitado ao lado de Cobain em sua tumba, aos 40 anos, o rock, em suas facetas mais ortodoxas, parece ter morrido de vez e seu fantasma pode até ensaiar outras ressurreições, mas as grandes questões que, hoje, não querem calar foram germinadas em oposição a suposta revolução do mártir Cobain e, mesmo que ainda não tenhamos nomes que possam instaurar um precoce cânone desta transição, o ambiente de experimentação está aí, fervilhando à espera de respostas. Candidatos?

ESQUEÇA O GRUNGE
Um gênero que nunca existiu e dez bandas fundamentais de uma época

Pixies - Egressa dos anos 1980, construiu ao lado dos Jesus & Mary Chain e do My Bloody Valentine todo um referencial estético de bandas que nasceriam na década seguinte, incluindo-se aí o Nirvana. Em 1991, mesmo ano de lançamento de Nevermind, lançaram seu canto do cisne, o genial Trompe Le Monde.
Mudhoney - Pioneiros da fusão psicodelismo/garage-rock/proto-punk, adicionada a uma muralha de decibéis, lançaram vários títulos antológicos pela Sub-Pop, como Superfuzz/Bigmuff, Mudhoney e Every good boy deserves fudge.
Swervedriver - Contemporâneos do Nirvana, estes britânicos de Oxford, pela aparência lastimável, pela urgência de suas guitarras e belas melodias, logo, angariaram o rótulo de crusties, equivalentes ao grunge defendido por Bruce Pavitt .
Afghan Whigs - Liderados pelo grande compositor Greg Dulli, os Afghan Whigs curiosamente nasceram do inusitado encontro de Dulli e o 2º guitarrista em uma cela de delegacia e estreitaram a distância entre o rock e a soul music criando uma sonoridade única.
Pavement - Slanted & Enchanted, o albúm de estréia destes californianos escancarou, sob a sombra do Velvet Undergound, a estética lo-fi no rock. Ouça este álbum e tente encontrar alguma novidade em bandas celebradas, como os Strokes.
Teenage Fanclub - Este quarteto de escoceses renovou em uma enorme lista de belas canções, o melhor do rock dos sixties, seguindo a cartilha power-pop de bandas como Big Star, Byrds, Beatles e Buffalo Springfield.
Ride - Sem a contribuição destes britânicos e dos Stone Roses, Oasis e o tal Britpop jamais existiriam da forma que conhecemos.
Primal Scream - Egresso do lendário Jesus & Mary Chain, Bob Gillespie e sua turma revolucionariam o rock com Screamadelica e abririam caminhos para a fusão de gêneros e a inclusão, sem traumas, de recursos dançantes da eletrônica no imaginário rock.
Dinosaur Jr. - Liderado pelo exímio guitarrista J. Mascis este trio de Boston levaria a equação belas melodias/guitarras urgentes de Neil Young e seu Crazy Horse à enésima potência. Realizaram grandes álbuns até 1992, após Where you Been, a formação original se rompeu e o baixista Lou Barlow lançou grandes álbuns à frente de seu grupo Sebadoh, como Smash Your Head on Punk Rock e Bakesale.
Mercury RevLiderados pelo dissidente dos Flaming Lips, Johnnathan Donahue, o Mercury Rev levou às últimas consequências o laboratório psicodélico de sua antiga banda em títulos como Yerself is steam e Boces.

*Originalmente publicada na revista Elenco, edição 2 (2004).

Fúria adolescente*


Romance de estréia de Nick McDonell, escrito aos 17 anos, revela o vazio de uma geração abastada

Apesar de algumas exceções, a mais célebre delas o poeta Jean-Arthur Rimbaud, autores precoces sempre foram vistos com suspeição pelos círculos da crítica literária. Aos dezessete anos, o nova-iorquino Nick McDonell inscreveu-se nesta árdua seara com o seu romance de estréia Doze.

Escrito durante as férias escolares, o livro rodou, de mão em mão, em um influente círculo de amigos, foi editado à toque de caixa e já ganhou tradução em dez países. A edição brasileira chega as prateleiras de nossas livrarias por iniciativa da Geração Editorial e o jovem autor, hoje com vinte anos, foi uma das estrelas internacionais presentes na 18ª. Bienal do Livro.

Amigo do pai de Nick, Terry McDonell, o escritor e jornalista Hunter S. Thompson, que trabalhou com Terry nos tempos áureos da Rolling Stone, foi um dos que endossaram a obra do rapaz. Alguns críticos mais entusiasmados chegaram a comparar o romance de estréia do menino prodígio com o revolucionário O Apanhador no Campo de Centeio, do recluso e mítico J.D. Salinger.

O enredo conta a saga de White Mike, jovem que trafega pelo jet-set nova-iorquino abastecendo mentes vazias, com drogas reais e a fictícia doze, que dá nome ao romance. A peregrinação de White Mike pelos ambientes freqüentados por jovens da elite cosmopolita americana revela ao longo de festas regadas a sexo, drogas e violência o vazio de uma geração obcecada com o desbunde de uma vida repleta de excessos, que atesta a pérfida indiferença ao mundo a sua volta e tributa com doses maciças de alienação a ausência de pais milionários, que atravessam o mundo em férias ou a negócios.

A comparação com Salinger, a princípio, parece equivocada e ambiciosa, pois é bom ressaltar que o romance que conta a saga solitária de descobertas e sensação de deslocamento experimentada por Holden Caufield, após ser reprovado no colégio, foi ao lado dos expoentes da literatura beat, um dos pilares do espírito contestador que propagaria a revolução trilhada pela geração que despontaria na década seguinte. Imaginar que um texto que retrata uma geração acometida por um vazio doentio possa ganhar as mesmas proporções seria uma ingenuidade tipicamente adolescente, mas é fato que o jovem autor oferece um contraponto perturbador para a imagem de inocente conservadorismo vendida pelos EUA de George W. Bush. Uma nação que se ampara em reducionismos, como a maniqueísta lua anti-terror, para justificar as barbáries cometidas no oriente-médio, após os atentados de 11/9/2001.

*Originalmente publicada na revista Elenco, edição 1 (2004).

Quatro mulheres e um sucesso*


Débora Bloch, Fernanda Torres e Daniela Thomas dão auxílio luxuoso à Duas Mulheres e um cádaver, estréia autoral de Patrícia Melo no teatro (foto: divulgação)

Apesar de, há séculos, freqüentar as mais seletas listas de best-sellers, o romance policial sempre foi estigmatizado como gênero menor da literatura. Decifrar o enigma acerca da polêmica poderia gerar um bom argumento investigativo, mas não é difícil concluir que toneladas de páginas vendidas, à toque de caixa, não renderam aos enredos policialescos uma dezena de autores que conseguissem romper a barreira do mero entretenimento descartável. Os poucos que conseguiram fazer com que o leitor não conseguisse "abandonar" o livro, depois de fechar a última pagina, como Raymond Chandler e Dashiel Hammet são rara exceção em uma galeria de personagens que costuma fisgar o leitor com a simples oferta de um descartável passaporte para a aventura.

É nesta árdua e ingrata seara que Patríca Melo vem revelando seu ímpeto criativo desde o romance de estréia Aqua Toffana. Seu primeiro grande êxito comercial foi Matador e, desde então, a autora paulistana entrou em escala ascendente, acumulando prêmios internacionais e lançando mais dois romances Elogio da Mentira e Inferno. Além das duas tramas policiais, Patrícia vem se envolvendo em outros projetos, roteirizando filmes, realizando trabalhos para a televisão e experimentando dar voz a suas personagens através do teatro.

A primeira incursão de Patrícia na dramaturgia ocorreu em 1987, quando adaptou A Doença da Morte, texto da escritora francesa Marguerite Duras. Quase quinze anos depois, para conceber sua estréia autoral nos palcos, a escritora fez alguns ajustes em um velho texto entregue à Aderbal Freire-Filho e ainda pôde contar com o auxílio luxuoso de três amigas de peso: Daniela Thomas, assinando a cenografia; Débora Bloch e Fernanda Torres contracenando à frente do espetáculo.

Duas Mulheres e um Cadáver narra os conflitos entre a esposa e a amante de um psicanalista e, como reza a cartilha policial, a peça inicia com um homicídio. Herdando o sábio recurso hitchcockiano, uma música evoca os climas de Bernard Hermann e silencia a platéia no exato momento em que todos vêem o psicanalista ser baleado. À partir daí, Ricardo Pavão permanece "morto" em cena e tem início o show de Débora Bloch e Fernanda Torres.

A estória é estruturada em flashbacks que remetem às situações antecedentes ao crime e, tão rápido quanto experimenta-se o ápice dramático no texto de Patrícia, percebe-se que as atrizes promovem um espetáculo simbiótico, pois os traços de personalidade das duas personagens vividas por Deborah e Fernanda parecem, histericamente, somar forças para clonar uma terceira, que sugere estereótipos do pensamento médio das mulheres que experimentaram a maturidade independente, depois da chamada revolução sexual dos anos 1960.

Paralelo aos compulsivos diálogos proferidos pelas duas personagens, o texto de Patrícia vai germinando uma lenta expectativa no espectador, envolto em uma trama de suspense acerca de qual das duas cometeu o crime. Apesar de estar sempre ciente deste desfecho que a peça reserva, o que realmente sacia o grande público é a agilidade imposta pelas duas atrizes enquanto satirizam relacionamentos e revelam suas paranóias e obsessões em diálogos tingidos pela ironia do humor negro.

Depois de infindáveis discórdias com os executantes da reforma da casa de Beatriz (Débora Bloch) e remissivos acessos de tosse de Ana (Fernanda Torres) quando, enfim, chegamos a reconstituição dos fatos que levaram ao assassínio do psicanalista temos a surpresa final e, no calor da revelação, somos tomados pela nítida impressão de termos fechado a contra-capa de um pulp fiction.

Se o espetáculo parece não resistir muito tempo na memória do telespectador, após sua jornada nos palcos, Patrícia submeterá o texto às lentes atemporais do cinema. Saber se a verborragia de Duas Mulheres e um Cadáver encontrará tradução na linguagem cinematográfica é ver para crer.

*Originalmente publicado na revista Cenário, edição 21. (2000)

Memória de chumbo*


O terror da ditadura transformado em ode à liberdade em Lembrar é Resistir**

Do lado de fora do antigo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, um grupo de pessoas aguarda em fila, cada uma delas portando uma ficha de identificação. Já no interior do prédio em ruínas, são recepcionadas por um homem que registra suas impressões digitais no verso da ficha. Quando a fila se encerra, a porta por onde todos entraram é trancada, com determinação, por um segundo homem e as pessoas ali reunidas embarcam em uma angustiante viagem pela história recente de nosso País.

Idealizado para celebrar os vinte anos de promulgação da anisitia e recordar o período sombrio que sucedeu o golpe militar de 1964, o espetáculo Lembrar é Resisitir comemora um ano em cartaz, promovendo uma comunhão reflexiva entre atores e público e resgatando um passado que, graças aos mecanismos de esquecimento propagados pela imposição do silêncio e ao ufanismo do milagre econômico, financiado às custas de uma dívida externa escabrosa, poucas vezes foi tão bem elucidado.

Toda a ação da peça se desenvolve nas dependências do extinto DOPS, provocando uma interação automática do público com os atores. Alguns nomes da produção, como Izaías Almada, que assina o texto com Analy Alvarez, foram encarcerados naquele mesmo lugar e testemunharam muitos dos momentos resgatados na peça. O texto baseia-se em fatos reais, mas apropria-se da ficção e registros da época para celebrar, com delicadeza, a força dos que resistiram com o próprio sangue, fazendo perseverar a democracia e a liberdade. Sem jamais recorrer à representação explícita da violência praticada contra os prisioneiros, o texto enclausura o público no drama individual de cada relato apresentado, possibilitando uma rica aproximação com o panorama coletivo da época.

Peregrinando pelos escombros do velho edifício, a platéia, progressivamente, absorve a amarga atmosfera que envolveu aqueles dias. Acompanhando a trajetória de Marcelo, ator que é preso logo no início da peça, visitamos a sala do superior dos dois agentes que encarceraram o rapaz. Ao fundo da mesa do homem, uma bandeira brasileira e um poster assustador do general Médici, simbolizam os anos de chumbo. Entre divagações sobre futebol, abuso sexual de prisioneiros e carreiras de cocaína, o homem atenta a equipe para o fato de que devem prender mais subversivos e que cada prisão deverá gerar, através de delações sob tortura, pelo menos mais seis presos. Tais metas fazem parte de uma concorrência interna da instituição onde as equipes com maior número de presos recebem premiações em dólar.

Neste ambiente de sórdida competitividade, mergulhamos no inferno do cárcere, visitando celas e prisioneiros políticos das mais diversas origens: atores, atrizes, cantoras, padres e até a mãe analfabeta de um subversivo, presa como isca para que os militares cheguem ao filho. Cela após cela, o público testemunha as atrocidades cometidas em nome da ordem e se comove, às lágrimas, com a força hercúlea de quem resistia.

No decorrer do espetáculo, é possível fazer uma leitura cronológica dos fatos históricos que levaram a abertura política. Pressionados pelo sequestro de um embaixador americano, os militares são obrigados a libertar 70 presos políticos que serão exilados no Chile, entre eles, um padre é escolhido e passará a integrar o grupo dos que, vivendo clandestinamente em outros países, denunciariam o silencioso holocausto à entidades internacionais que defendiam a anisitia e os direitos humanos, provocando forte repercussão internacional e alertando a opinião pública brasileira sobre os excessos cometidos pelo regime.

No ato que antecede a promulgação da anistia, o público é conduzido a uma cela vazia onde um cinto de couro que pende do teto, formando uma forca, alegoriza o suposto suicídio do jornalista Vladmir Herzog. Os laudos que confirmaram o assassinato de Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do II Exército, culminaram na demissão de seu comandante, o general Ednardo D’Ávila e, logo mais, na demissão do ministro do exército, Sylvio Frota. O caminho para a abertura era irreversível.

Aos que vivenciaram o período sem jamais ter a possibilidade de compreender tais fatos e aos que observam o passado, sustentados pela liberdade que herdaram desta geração marcada pela dor e pela opressão, Lembrar é resistir revela-se, ao final, muito mais que um convite para exorcizar o passado, pois mesmo que a luta pela democracia não tenha sido em vão, os propósitos que moveram estes jovens à sangrenta trajetória aqui representada, ainda continuam a espera de soluções. Aos que ainda carregam dúvidas, o retorno ao mundo miserável do centro de São Paulo, oculto através da porta que nos credenciou a este belo exercício de reflexão, oferece uma lamentável prova de que, sim, ainda há muito por fazer.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 20 (2000). **Foto: Nezito Reis (relação dos nomes, aqui)

Glauber através do espelho*



Ensaio de Gilberto Felisberto Vasconcellos inventaria a ausência do polêmico cineasta (cartaz original de Rogério Duarte)

Há duas décadas, a voz de Glauber Rocha foi silenciada por sua precoce morte. Alívio para alguns, a partida do inquieto cineasta enterrou muito mais do que suas controvérsias. Desde então, o cinema brasileiro afundou em sucessivas crises, abdicou do diálogo com seu próprio universo e a manipulação estética da teledramaturgia passou a ser espelho de um povo que, diariamente, prostra-se diante da tv para abortar a manifestação de sua identidade.

Gilberto Felisberto Vasconcellos, intelectual da envergadura polêmica de Glauber, ressucita o espírito do cineasta em Glauber Pátria Rocha Livre e esmiuça a obra do autor em busca dos sintomas desta patologia que se abateu sobre o País, após duas décadas de aniquilação ideológica e o estabelecimento de uma democracia mediada pela especulação financeira e a manipulação audivisual das “transformações” políticas e sociais.

O ensaio analisa a obra completa do cineasta, com ênfase nos filmes Deus e o diabo na terra do sol, Terra em transe, A Idade da terra, e evidencia um largo paralelo entre a obsessão de Glauber pela tragédia nacional instaurada com o suicídio de Getúlio Vargas e a derrocada dos projetos enterrados com a deposição de Jango, com os caminhos trilhados pelo País, após a reabertura politica e a unificação de um apático senso comum, articulado pelo monopólio televisivo. Fiel ao pensamento de Glauber, este oportuno ensaio revela-se fundamental para a compreensão destes nossos tempos.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 22 (2001).

Cenas de um casamento*


Hanif Kureishi e seu terceiro romance Intimidade (foto: Jerry Bauer)

Fruto da união de um paquistânes com uma inglesa, Hanif Kureish estudou filosofia, durante a juventude, mas tornou-se célebre pelo mundo das letras como dramaturgo, durante os anos 1970, ganhando projeção mundial com o roteiro do filme Minha adorável lavanderia do renomado diretor Stephen Frears.

Intimidade é seu terceiro romance e como os outros dois que o antecedem, O Buda do subúrbio e Álbum Negro, revela, à cada página, uma deliciosa ficção, cuja receita incluí um narrador em primeira pessoa que sugere vários aspectos biográficos do autor.

Muitos escritores, ao adotar este mesmo recurso, caem no erro de utilizar o narrador para desfilar verborragias fundadas em suas próprias convicções. Kureishi o faz de forma muito sutil. Experiências pessoais como a ruptura de um casamento, sustentado por indulgência, descrito em Intimidade, ganham voz universal por retratar a sensação de deslocamento da geração da qual fez parte o autor.

A revolução comportamental fomentada pela juventude de 1968 chega ao final de milênio domesticada pela nova ordem neo-liberal e instituições sustentadas por valores antes questionados, como o casamento, voltaram a ser o porto-seguro de homens que enterraram sua inquietude. Sintomaticamente, a única redenção encontrada pelo protagonista Jay é Nina, uma jovem, perdida sob a sombra nostálgica de muitos dos ideais contemplados pela geração do autor.

*Originalmente publicada na revista Cenário, edição 20 (2000).